SOCIEDADES INDÍGENAS E A AÇÃO DO GOVERNO

SOCIEDADES INDÍGENAS E A AÇÃO DO GOVERNO

P R E F Á C I O

O tratamento da questão indígena é um dos assuntos prioritários na agenda social do Governo. O índio brasileiro é um cidadão que tem anseios, carências e necessidades específicas, que precisam ser atendidas pelo Estado.



  1. Com a moderna antropologia, aprendemos que a cultura indígena não é, como muitos supõem, uma etapa primitiva da escala civilizatória, mas sim uma realidade cultural diferenciada, capaz de reproduzir estilos próprios de organização e desenvolvimento.




  2. A realidade indígena brasileira ainda é pouco conhecida. A taxa de natalidade dos indígenas é superior à média nacional. Em muitos aspectos, o Brasil contemporâneo é mais indígena do que normalmente se supõe. Ainda que culturalmente transformada pela interação secular com os processos civilizatórios, a presença indígena é fortemente percebida no tipo físico e nos costumes de amplos segmentos da população, sobretudo entre os brasileiros do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste. Se é verdade que os grupos indígenas brasileiros estão reduzidos a uma pequena fração do que foram no passado, também é verdade que este segmento da população encontra-se hoje em plena recuperação demográfica.




  3. Estima-se que a população indígena do Brasil abranja, atualmente, cerca de 326 mil pessoas, distribuídas em 215 diferentes etnias que falam cerca de 170 línguas distintas. Embora concentrada em grande parte na Amazônia, a população indígena brasileira está dispersa em quase todo o território nacional. Alguns grupos ainda vivem em relativo ou completo isolamento, outros estão integrados à economia regional, mas se consideram e são reconhecidos como membros de uma comunidade culturalmente diferenciada.




  4. Para esses grupos, a afirmação do direito ao etnodesenvolvimento e a preservação de sua identidade cultural passam pela garantia de seus direitos constitucionais, pela posse da terra, pela defesa de condições dignas de vida, e pela conquista de seu espaço político no seio do Estado e da nacionalidade. E são exatamente essas as metas da política indigenista do governo.






  5. A questão da terra é central. As terras indígenas no Brasil cobrem, no total, 947.011 quilômetros quadrados, correspondendo a cerca de 11,13% do território nacional, ou seja, o equivalente à França e Inglaterra juntas. Só o território Yanomami, já inteiramente demarcado, é igual ao de Portugal. Dentre as 554 áreas indígenas reconhecidas pela FUNAI, 223 já se encontram demarcadas, homologadas e registradas, cobrindo uma extensão de 456.864 quilômetros quadrados. Outras 52 áreas estão demarcadas. Das 279 áreas indígenas por demarcar, 136 já estão identificadas ou em processo de identificação.




  6. Em 1995 e começo de 1996, a demarcação avançou. Com a promulgação do decreto nº 1775/96, procurou-se assegurar maior transparência e segurança jurídica ao procedimento demarcatório. A preocupação do Governo é garantir os direitos dos indígenas e aperfeiçoar os dispositivos legais relativos a esses direitos.




  7. Mas não basta demarcar. é preciso dar segurança às populações indígenas. As terras indígenas, em sua grande maioria, localizam-se em áreas de difícil acesso, próximas a áreas de fronteira e muitas são cobiçadas por fazendeiros, garimpeiros e também por aventureiros. A FUNAI gasta hoje cerca de 30% do seu orçamento para operações de retirada de intrusos das áreas indígenas. A FUNAI estará retomando brevemente a operação Yanomani em Roraima, que vai retirar em torno de 1500 garimpeiros das terras dos índios Yanomani e Macuxi. Outras operações serão feitas na área do Rio Xingu e na região do alto Rio Guamá, no Pará, onde vivem perto de 30.000 pessoas não índias em terra dos índios Tembé.




  8. Além disso, o Governo desenvolverá atividades de saúde e educação específicas para as populações indígenas. Recentemente, a Radiobrás criou um programa de rádio especial para os indígenas. O Ministério da Agricultura e a FUNAI estão desenvolvendo um projeto inovador de apoio às atividades produtivas e agropecuárias realizadas por indígenas. Outra preocupação é com a proteção do meio ambiente. O Governo intensificará as medidas de interdição da exploração predatória e ilegal de recursos naturais, de remoção de invasores, especialmente garimpeiros em terras indígenas e promoverá a auto-sustentação e o desenvolvimento comunitário dos grupos indígenas.






  9. Não obstante os avanços já realizados, persistem alguns problemas. A região Amazônica, onde está a maioria das comunidades indígenas, abriga 17 milhões de brasileiros. É preciso identificar e realizar projetos de desenvolvimento econômico para esta região, que sejam compatíveis tanto com a preservação do meio ambiente quanto com a proteção dos territórios indígenas.




  10. Na Amazônia, vivem ainda cerca de 300 mil garimpeiros, que têm sido os principais responsáveis pela invasão de terras indígenas. Por isto, além da demarcação dos territórios e do policiamento de suas fronteiras é necessário buscar alternativas econômicas ao garimpo de modo a remover uma das principais ameaças às comunidades indígenas.




  11. O suicídio dos índios Guarani-Kaiowá constitui também uma fonte de preocupação que requer uma compreensão mais ampla. É por isso que o Governo deseja promover a discussão com a sociedade civil a respeito das ações de apoio e valorização das populações indígenas. A participação de organizações não-governamentais é fundamental nessa questão. O Governo tem trabalhado com essas entidades, com resultados muito positivos.




  12. No plano externo, o Brasil desenvolve ampla cooperação sobre as questões indígenas. O recente acordo firmado com a Alemanha, no âmbito do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil deu novo impulso a esse intercâmbio, particularmente no que se refere a demarcação de terras indígenas.



  13. Esses são alguns elementos da política indigenista deste Governo. Eles refletem uma disposição sincera e a determinação de agir em defesa da sobrevivência e dos valores culturais dos nossos índios.

Fernando Henrique Cardoso


1. OS ÍNDIOS NO BRASIL
Estima-se, com base nas fontes históricas disponíveis, que no começo do século XVI a população autóctone que vivia dentro do território onde posteriormente se consolidariam as fronteiras do Brasil chegava a 5 milhões de indivíduos.
Ao longo de séculos de contato com a civilização ocidental, aquele contingente indígena inicial sofreu contínuo processo de redução populacional que provavelmente durou até o fim da década de 1950.
A partir de então houve uma recuperação demográfica, facilitada pela demarcação - ainda inconclusa - das terras tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas, e pela extensão de serviços de assistência prestados pelos órgãos do estado, missões laicas e religiosas.
A população indígena do Brasil alcança hoje o número de 325.652 indivíduos. Esse número tende a crescer diante da continuidade dos mecanismos de proteção de taxas de natalidade superiores à média nacional.
Essa população está distribuída em cerca de 215 etnias, que falam cerca de 170 línguas distintas. A classificação lingüística reconhece a existência de dois troncos principais (tupi e macro-jê) e de outras seis famílias lingüísticas de importância significativa (aruak, arawá, karib, maku, tukano e yanomami), além de muitas línguas sem filiação definida.
Cerca de 60% da população indígena brasileira vive na região designada como Amazônia Legal, mas registra-se a presença de grupos indígenas em praticamente todas as unidades da Federação. Somente no Rio Grande do Norte, no Piauí e no Distrito Federal não se encontram grupos indígenas.
A característica principal da população indígena do Brasil é a sua grande heterogeneidade cultural. Vivem no Brasil desde grupos que ainda não foram contatados e permanecem inteiramente isolados da civilização ocidental, até grupos indígenas semi-urbanos e plenamente integrados às economias regionais. Independentemente do grau de integração que mantenham com a sociedade nacional, esses grupos aculturados preservam sua identidade étnica, se auto-identificam e são identificados como índios.
Atualmente os principais grupos indígenas brasileiros em expressão demográfica são: Tikuna, Tukano, Macuxi, Yanomami, Guajajara, Terena, Pankaruru, Kayapó, Kaingang, Guarani, Xavante, Xerente, Nambikwara, Munduruku, Mura, Sateré-Maué, dentre outros.
No quadro a seguir encontra-se a distribuição dos grupos indígenas nas diferentes unidades da Federação e seu contingente populacional. As terras indígenas no Brasil cobrem uma extensão de 946.452 Km quadrados, o que corresponde a cerca de 11,12% do território nacional.




Distribuição geográfica e populacional dos

grupos indígenas no Brasil
Amazonas
89.529
Acre
6.610
Amapá
5.095
Rondônia
5.573
Roraima
37.025
Pará
15.715
Tocantins
6.360
Alagoas
4.917
Bahia
8.561
Ceará
4.650
Espírito Santo
1.347
Goiás
142
Maranhão
14.271
Minas Gerais
6.200
Pernambuco
19.950
Rio de Janeiro
271
São Paulo
1.774
Sergipe
230
Paraíba
6.902
Mato Grosso
17.329
Mato Grosso do Sul
45.259
Rio Grande do Sul
13.354
Paraná
7.921
Santa Catarina
6.667
TOTAL
325.652
Observações do quadro anterior:
  • Os dados populacionais referem-se a 215 sociedades indígenas;
  • Não inclui os índios isolados;
  • Inclui os índios que vivem nos perímetros urbanos das seguintes cidades: Amambaí e Campo Grande (MS), Boa Vista (RR), Manaus (AM), Governador Valadares (MG), e Curitiba (PR);
  • Dados elaborados pelo CEDOC/FUNAI, em fevereiro de 1995.
Distribuição regional das terras indígenas



 




2. A POLÍTICA INDIGENISTA
A política indigenista brasileira tem procurado acompanhar, ao mesmo tempo, a evolução dos estudos antropológicos e as demandas específicas das comunidades indígenas brasileiras. A seguir são indicados pontos centrais dessa política.
Reconhecimento da diversidade cultural
Até meados da década passada, prevalecia o cunho integracionista das legislações nacionais de proteção às populações indígenas. Da mesma forma, no plano internacional, a Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho (concluída em 1957) igualmente tratava a questão indígena sob um prisma essencialmente integracionista.
Na ótica integracionista, as sociedades indígenas eram vistas como um estágio primitivo e inicial de um processo unilinear de evolução. A condição de índio correspondia, assim, a um estado necessariamente transitório, que desapareceria na medida em que os grupos indígenas fossem gradual e harmoniosamente incorporados às sociedades nacionais. O integracionismo encara, portanto, as sociedades indígenas como um fenômeno cultural em vias de extinção e sem possibilidades de permanência e de reprodução.
Mais recentemente, contudo, com a superação progressiva do monopólio intelectual do evolucionismo no pensamento antropológico, as sociedades indígenas passaram a ser reconhecidas como realidades culturais diferenciadas, capazes de reproduzir estilos próprios de organização e desenvolvimento.
No plano político, essa nova postura se refletiria na afirmação crescente do direito das populações indígenas de verem respeitada a sua diversidade cultural. O discurso integracionista começou assim a ceder espaço, nas legislações internas e no campo internacional, ao reconhecimento da realidade pluriétnica dos estados nacionais e do direito das populações indígenas de verem realizadas suas aspirações culturais de desenvolvimento diferenciado (etnodesenvolvimento). A diversidade cultural passa a ser encarada, nesse prisma, como um fator de enriquecimento cultural da nacionalidade.
No plano internacional, essa nova visão se cristalizou na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, concluída em 1989. O Governo envidará esforços para ratificar esta Convenção.
A afirmação do direito à diversidade cultural importa a reivindicação pelas populações indígenas de um espaço político próprio no seio do Estado e da nacionalidade. A conquista desse espaço supõe, por sua vez, o reconhecimento de níveis crescentes de participação das comunidades indígenas nas decisões que tenham impacto sobre o seu modo de vida.
Até a década de 70 supunha-se como fatal, no Brasil, a integração progressiva das populações indígenas à comunhão nacional. A própria redução do contingente populacional indígena, que em 1957 caíra a algum número entre o mínimo de 68.100 e o máximo de 99.700 indivíduos segundo a estimativa feita por Darcy Ribeiro, parecia indicar a inevitabilidade de uma rápida extinção das tribos remanescentes e de sua assimilação na população mestiça.
O que se verificou, no entanto, é que apesar de todas as pressões assimilacionistas, os grupos indígenas não se desfizeram no corpo da população mestiça. Ao contrário, seu contingente populacional vem-se recuperando progressivamente, a ponto de ter alcançado atualmente um número em torno de 330 mil pessoas. Os grupos indígenas brasileiros têm logrado manter nas últimas décadas uma taxa de reprodução superior à da média nacional. Ao contrário do que se previra, o índio brasileiro não se transformou em branco, nem foi totalmente exterminado, mas iniciou nas últimas décadas um lento e seguro processo de recuperação demográfica para o qual terá contribuído, em grande medida, a demarcação ainda inconclusa das áreas e a prestação de serviços assistenciais pelo Estado.
Os grupos indígenas transmutam-se, reelaborando os elementos de sua cultura num processo sempre contínuo de transfiguração étnica. Continuam, entretanto, identificando-se e sendo identificados como indígenas. Ao invés de sua extinção ou assimilação, o que se tem verificado nas últimas décadas é a vigorosa resistência da identidade étnica dos grupos indígenas brasileiros independentemente do grau de interação que os diferentes grupos experimentam com a sociedade envolvente.
A Constituição Federal de 1988 reconhece as sociedades indígenas e suas formas de organização social, línguas, costumes, crenças e tradições, promovendo portanto a valorização da identidade cultural diferenciada. Essa é, portanto, a base da atual política indigenista.
Terras Indígenas
As terras indígenas no Brasil cobrem no total uma extensão de 946.452 quilômetros quadrados, correspondendo a cerca de 11,12% do território nacional. Em termos de comparação, numa extensão contínua, correspondem aos territórios da França e da Inglaterra tomados conjuntamente, ou a mais de duas vezes a extensão do estado da Califórnia. As 554 áreas indígenas reconhecidas pela FUNAI abrigam uma população indígena estimada em cerca de 330 mil pessoas.
O problema da terra é o eixo central da questão indígena. A noção de território para as sociedades indígenas é muito mais do que simples meio de subsistência. A terra representa o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e de conhecimento. O conceito de território está ligado à história cultural do grupo, a seu universo mitológico, às relações de família, ao conjunto das interações sociais, e ao sistema de alianças políticas e econômicas entre aldeias de um mesmo grupo. O território sustenta a trama da vida cultural de cada grupo. A garantia da terra é por isso condição essencial para assegurar a sobrevivência dos índios como grupos etnicamente diferenciados da sociedade nacional.
Por um lado, os grupos indígenas do Sul, Leste, Nordeste e parte do Centro-Oeste, em contato antigo com a sociedade nacional, encontram-se na sua grande maioria acantonados em pequenas glebas que são a parte remanescente de seus antigos territórios. Trata-se na grande maioria de grupos altamente aculturados e que participam, com forte grau de interação, da economia rural das regiões onde vivem.
E por outro lado, o mapa das terras indígenas na Amazônia e parte do Centro-Oeste revela na extensão das áreas o padrão mais recente de contato e de preservação do espaço cultural dos grupos.
A Constituição de 1988 assegurou aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Essas terras destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Demarcação de terras indígenas
A demarcação das terras indígenas envolve as seguintes etapas:
  • identificação – que consiste na elaboração pela FUNAI da proposta de criação de uma área indígena, a partir da localização de um grupo específico e da realização de estudos etno-histográficos, demográficos e sociológicos e do levantamento cartográfico e fundiário da região onde se encontram. A proposta da FUNAI é publicada, e terceiros interessados têm noventa dias para apresentar suas eventuais objeções, com todas as provas de que dispuserem. Havendo contestações, a FUNAI elabora parecer, e encaminha a proposta de demarcação, devidamente instruída, à aprovação pelo Ministro da Justiça;
  • demarcação – aprovando a proposta da FUNAI, o Ministro da Justiça baixa portaria declarando a área de ocupação indígena e a manda demarcar com a colocação física de sinais de delimitação. Essa é a etapa que envolve maiores custos operacionais, tendo em vista sobretudo a longa extensão do perímetro das áreas a demarcar. Durante o procedimento de demarcação, o órgão fundiário federal deve proceder ao reassentamento dos ocupantes não-índios;
  • homologação – que consiste na ratificação formal do procedimento de demarcação e dos limites da área indígena mediante a expedição de decreto pelo Presidente da República. As áreas homologadas são registradas como propriedade da União em livro próprio na Secretaria do Patrimônio e no cartório da comarca em que se localizam;
  • regularização fundiária – que consiste na completa desintrusão das áreas da presença de ocupantes não-índios, e o saneamento das freqüentes pendências judiciais envolvendo títulos de propriedade incidentes sobre as áreas indígenas e a manutenção de posse por terceiros.
As áreas indígenas somente se consideram regularizadas quando estejam devidamente registradas e desintrusadas. O órgão de proteção aos índios deve além disso manter sobre elas uma permanente vigilância e fiscalização, para coibir intrusões posteriores.
Das 554 áreas indígenas conhecidas no país, um total de 220 encontram-se demarcadas, homologadas e registradas, cobrindo uma extensão de 436.400 quilômetros quadrados ou seja 47,24% do total das terras. Há 275 áreas já demarcadas. Restam portanto por demarcar um total de 279 áreas. Dentre essa áreas por demarcar, 133 já estão identificadas ou em processo de identificação.
Cabe notar que, dentre as áreas já demarcadas, muitas ainda se encontram parcialmente ocupadas por fazendeiros, posseiros, madeireiras, arrendatários, mineradoras e garimpeiros. O Governo tem desenvolvido ações específicas de retirada de pessoas não indígenas dessas terras, e deverá intensificá-las.
A solução do decreto nº 1.775/96
O decreto 1775/96 mantém, em linhas gerais, o modelo demarcatório do Decreto 22. Estabelece, no entanto, que desde o início da identificação das terras até 90 dias após a data da publicação no Diário Oficial da União do relatório da FUNAI - onde se identifica o perímetro da área em demarcação - os interessados poderão apresentar perante o órgão de proteção ao índio dois tipos de defesas: (1) de que a parte da área que ele alega ser sua, não pode ser abrangida pelas terras indígenas; (2) de que a indenização das suas benfeitorias não está correta. Passados os 90 dias, a FUNAI tem um prazo de 60 dias para emitir um parecer sobre as alegações que foram apresentadas.
O processo é, então, encaminhado, devidamente instruído, ao Ministro da Justiça que, no prazo de 30 dias decide da seguinte maneira em relação à identificação:
  • rejeita todas as alegações dos interessados e declara identificada a gleba tal qual foi publicada no relatório;
  • determina novas diligências, que deverão ser realizadas no prazo de 90 dias;
  • desaprova a identificação por não terem sido atendidos os requisitos constantes do parágrafo 1º do art. 231 da Constituição Federal. Note-se que esta é a única hipótese em que o Ministro pode rejeitar uma proposta de demarcação.
Observe-se ainda que os interessados agora podem defender seus pontos de vista diante da Administração Pública, mas sem que esta faculdade possa ser utilizada para meramente adiar sine die o processo demarcatório. Esta é a função dos prazos estipulados no decreto nº 1.775/96.
As terras indígenas demarcadas após 1988 (115 áreas) e que já foram objeto de registro nos órgãos competentes, num total superior a 26 milhões de hectares, incluindo as terras dos índios Yanomami, não poderão ser contestadas. Nesses casos, esgotou-se o processo demarcatório.
Da mesma forma, as terras ainda não registradas poderão ser mantidas com seus limites atuais, caso não sejam acolhidas as alegações de prejuízos de terceiros. O importante é que agora existe a possibilidade de se ouvirem os interessados potencialmente atingidos. Por isto, o processo demarcatório ganhou mais transparência e consistência jurídica e política, ao afastar a alegação de inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio do contraditório.
Proteção do meio ambiente em áreas indígenas. Exploração de madeira e mineração
A manutenção do equilíbrio ecológico nas terras indígenas e no seu entorno é condição necessária à sobrevivência física e preservação cultural das comunidades. As terras indígenas têm sido alvo, no entanto, de fortes pressões externas e internas resultantes da exploração florestal, arrendamentos, intrusões de posseiros, projetos de colonização, construção de estradas, hidrelétricas, mineração e exploração de garimpos.
Em algumas áreas, a sobre-exploração de recursos naturais promovida pelos próprios índios (garimpagem de ouro e exploração de mogno) vem sendo responsável por rápida degradação do meio ambiente.
Levantamento de interferências realizado pelo Serviço do Meio Ambiente das Terras Indígenas (SEMATI/FUNAI) em 1990 indicou que, além das interferências externas de projetos de desenvolvimento (construção de barragens, usinas, linhas de transmissão, estradas, ferrovias), vem ocorrendo intensa exploração florestal em 50 áreas indígenas e exploração mineral em outras 14.
Diante desse quadro, a União vem promovendo medidas para assegurar o equilíbrio ecológico das terras indígenas e do seu entorno, mediante programas de diagnóstico ambiental, recuperação de áreas degradadas, controle ambiental das atividades modificadoras do meio ambiente, educação ambiental envolvendo as comunidades indígenas e seus vizinhos, e identificação e difusão de tecnologias adequadas ao manejo sustentado dos recursos naturais. Por força do decreto nº 1.141/94, a execução desses programas deve ser realizada pela FUNAI em coordenação com o Ministério do Meio Ambiente.
Dentre os casos mais notórios de degradação acelerada do meio ambiente em áreas indígenas, menciona-se a invasão da terra indígena Yanomami por garimpeiros, que tem por conseqüência a destruição dos ecossistemas, contaminação por mercúrio dos rios e igarapés, transmissão de doenças, escassez da caça e pesca, desestruturação cultural dos grupos, e altos índices de mortalidade no contato indiscriminado com estranhos. Na área dos Kayapó, a presença de garimpeiros e de madeireiras é estimulada pelos próprios índios, que cobram royalties sobre a produção de ouro e auferem renda sobre a exploração irregular de reservas de mogno.
Situação das terras indígenas
Dentre as conseqüências ecológicas e culturais assinala-se a poluição e assoreamento dos rios, abandono das práticas tradicionais de plantio de subsistência e o surgimento de uma forte estratificação social baseada no acesso à renda do garimpo e da exploração florestal. Os grupos Kayapó são os que têm permitido nos últimos anos a retirada de maior volume de madeira em suas áreas.
Não há levantamentos oficiais sobre o potencial de produção de minério nas terras indígenas. Estima-se, no entanto, que algumas terras indígenas estão assentadas sobre importantes reservas minerais, como é o caso da terra indígena Yanomami.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas (e também o aproveitamento de recursos hídricos) só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei. Contudo, até que o Congresso aprove tal lei, a exploração dos recursos minerais e o aproveitamento dos recursos hídricos existentes nas terras indígenas estarão impossibilitados.
Assistência às populações indígenas na área da educação
A Constituição Federal assegura às populações indígenas a utilização de suas línguas maternas no ensino fundamental e processos próprios de aprendizagem (art. 210 §185 § 2º). O Estado deve igualmente proteger as manifestações das culturas indígenas (art. 215 §185 § 1º).
Cabe ao Estado assegurar às populações indígenas ensino fundamental diferenciado. A escola é, na maioria das vezes, uma instituição estranha à cultura dos índios. Trata-se, no entanto, de um importante meio de acesso a conhecimentos que possibilitam o domínio dos códigos da sociedade ocidental. A educação é por isso condição essencial para que os índios possam estabelecer relações mais simétricas com a sociedade nacional. Por outro lado, essa mesma escola deve representar um espaço de fortalecimento da cultura indígena, através da valorização de seus costumes, tradições e línguas.
Os dados oficiais indicam a existência de cerca de 215 grupos étnicos distintos entre as populações indígenas brasileiras, com 170 línguas autóctones ainda faladas. Esta é a dimensão do patrimônio cultural a proteger.
A população escolar indígena é de cerca de 70 mil alunos. O sistema de atendimento conta atualmente com 785 escolas, dentre as quais muitas geridas diretamente por instituições confessionais ou laicas.
A maioria das escolas indígenas em funcionamento ainda reproduz o sistema escolar da sociedade envolvente. Um processo de educação diferenciado requer a definição de currículos, programas, calendários e material didático específico para cada situação cultural. Outra questão importante é a formação de professores indígenas, o que significa a valorização do próprio índio como reprodutor de processos educacionais.
Nos termos do decreto nº 26, de 4 de fevereiro de 1991, as atribuições governamentais na articulação de um programa nacional integrado de educação indígena é de responsabilidade do Ministério da Educação, em coordenação com a FUNAI.
O Estatuto do Índio estende aos índios o sistema de ensino em vigor no país (art. 48) e assegura a alfabetização bilíngüe (art. 49).
A FUNAI, juntamente com o Ministério de Educação e Cultura, está elaborando programas especiais para a oferta de educação escolar aos índios, de modo que se garanta o atendimento das disposições constitucionais e legais pertinentes.
Assistência às populações indígenas na área da saúde
A situação de saúde das populações indígenas brasileiras de modo geral não difere das condições gerais da população nacional. No caso das populações indígenas, contudo, esse quadro assume características peculiares em função das particularidades étnicas e culturais.
Diagnóstico elaborado pela FUNAI indica que as enfermidades mais comuns entre os índios brasileiros são a malária, oncocercose, leishmaniose, viroses e dermatoses na região amazônica; esquistossomose, leishmaniose, tuberculose e alcoolismo no Nordeste; doença de Chagas, esquistossomose, pênfigo, tuberculose e alcoolismo no Centro-Oeste e Sudeste; tuberculose, doenças crônico-degenerativas, alcoolismo e doenças sexualmente transmissíveis na região
Sul. As doenças diarréicas e as infecções respiratórias agudas constituem uma das primeiras causas de mortalidade, especialmente infantil, entre os grupos indígenas. O alcoolismo, a tuberculose e a desnutrição são igualmente importantes causas de morbidade e mortalidade, principalmente entre os grupos de longa história de contato com a sociedade nacional.
Os condicionantes da situação de saúde das populações indígenas estão ditados pelo padrão de contato com a sociedade nacional. A preservação de seu território é por isso essencial à manutenção das condições de higidez dos grupos.
É igualmente importante a implementação de atividades geradoras de riquezas que possam garantir aos índios meios adequados de sobrevivência, em especial a sustentabilidade alimentar.
A dispersão populacional e a localização em regiões geralmente remotas do território dificultam o acesso pelas populações indígenas aos serviços governamentais de saúde. Soma-se a isso a dificuldade do deslocamento de equipes médicas e de equipamentos, o que faz com que em muitos casos a atenção de serviços de saúde seja praticada de forma descontínua.
A Fundação Nacional de Saúde exerce a responsabilidade de execução, em coordenação com a FUNAI, dos programas de atendimento à saúde dos indígenas. A FUNAI mantém infra-estrutura que conta com 32 casas do índio e 290 enfermarias.
As operações emergenciais de atendimento a grupos específicos normalmente envolvem a conjugação de esforços da FUNAI, Ministério de Saúde, Forças Armadas e entidades não-governamentais, além de canalizarem, quando disponíveis, recursos oriundos de cooperação externa.
Para enfrentar a carência de recursos humanos e as limitações vigentes quanto à contratação de pessoal, a FUNAI firmou convênio com uma Organização Não-Governamental, através do qual foram envolvidos mais de cem profissionais de saúde, que prestam seus serviços em várias regiões do país.
3. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Dentre as áreas mais férteis para a busca de cooperação externa de fontes públicas e privadas mencionem-se a formação e treinamento de pessoal, realização de assistência à saúde, implementação de projetos de desenvolvimento comunitário de interesse dos grupos indígenas, cursos de indigenismo, pesquisa lingüística e antropológica, financiamento da construção de escolas, formação de professores, e produção de material didático.
Até hoje, a maioria dos projetos contemplados de cooperação externa tende a concentrar-se na demarcação das áreas indígenas. Este é o caso, por exemplo, dos projetos financiados com participação do Banco Mundial e do BID, e do componente de assistência às populações indígenas no Programa Piloto para Proteção de Florestas Tropicais.




PROGRAMA PILOTO

  • É o mais importante instrumento internacional para a cooperação ambiental desde a conferência do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992);
  • Projeto de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal é essencial para as comunidades indígenas brasileiras;
  • acordo com a Alemanha para o financiamento do projeto de terras indígenas foi assinado em 1995.
A colaboração entre a FUNAI e Organizações Não-Governamentais busca, principalmente, adquirir modelos mais eficazes de gestão. Além disso, deve-se reconhecer a importância do papel crítico tradicionalmente desempenhado por estas organizações, que é parte inerente ao regime democrático.
4. ASPECTOS LEGAIS

Tratamento Constitucional de 1934 a 1969
A Constituição de 1934 estabeleceu a competência privativa da União para legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional, assegurando-lhes o respeito à posse das terras em que se achassem permanentemente localizados, as quais não poderiam ser alienadas. Com pequenas mudanças de redação, as Constituições de 1937 e 1946 repetiram os mesmos princípios.
Já o texto constitucional de 1967 fez importante acréscimo ao estabelecer que as terras ocupadas pelos silvícolas integram o Patrimônio da União. Outro dispositivo assegurou o usufruto exclusivo dos índios sobre os recursos naturais e de todas as utilidades existentes em suas terras.
Atribuir as terras indígenas ao domínio da União foi a fórmula encontrada para impedir que tais terras pudessem ser vendidas ou loteadas. Trata-se, portanto, de uma solução legal que visa a garantir uma base física permanente para as sociedades indígenas.
A Emenda Constitucional de 1969 aditaria a esse corpo de normas um novo preceito estatuindo a "nulidade e extinção dos efeitos jurídicos dos atos de qualquer natureza que tivessem por objeto o domínio, a posse ou a ocupação por terceiros de terras habitadas pelos indígenas", estabelecendo também que os terceiros ocupantes não teriam direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a FUNAI.
A Constituição de 1988
O tratamento constitucional da questão indígena ampliou-se consideravelmente em 1988.
O artigo 20 da Constituição Federal de 1988, inclui entre os bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. A inovação é importante. Trata-se aqui de reconhecer não apenas a ocupação física das áreas habitadas pelos grupos indígenas, mas sim a ocupação tradicional (segundo as tradições) do território indígena, o que significa reconhecê-lo como toda a extensão de terra necessária à manutenção e preservação das particularidades culturais de cada grupo. Incorporam-se aí não apenas as áreas de habitação permanente e de coleta, mas também todos espaços necessários à manutenção das tradições do grupo. Entram nesse conceito, por exemplo, as terras consideradas sagradas, os cemitérios distantes e as áreas de deambulação. A Constituição de 1988 identificou assim o conceito de terra indígena com o de "habitat", explicitando que a posse indígena não se confunde com o conceito civil.
O artigo 22 afirma a competência privativa da União para "legislar sobre populações indígenas". Aqui também se verifica uma ruptura importante com relação às Constituições anteriores, que se referiam à competência da União para "legislar sobre incorporação do silvícola à comunhão nacional". Ao abandonar intencionalmente qualquer referência à incorporação ou integração dos índios à sociedade nacional, a Constituição de 1988 reconheceu o direito das populações indígenas de preservar sua identidade própria e cultura diferenciada. Na tradição constitucional anterior, a condição de índio era vista como um estado transitório que cessaria necessariamente com a integração. A partir de 1988, o discurso da integração cedeu passo ao reconhecimento da diversidade cultural.
O artigo 49 estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais nas terras indígenas.
O artigo 109 fixa a competência da Justiça Federal para processar e julgar disputas sobre direitos indígenas, e o artigo 129 inclui entre as funções institucionais do Ministério Público a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas.
O artigo 215 assegura às comunidades indígenas o ensino fundamental bilíngüe (utilização de suas línguas e processos próprios de aprendizagem).
Os artigos 231 (desdobrado em seis parágrafos) e 232 contêm todo um capítulo sobre os direitos dos índios, onde ressaltam os seguintes elementos:
  • reconhecimento da identidade cultural própria e diferenciada dos grupos indígenas (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições), e de seus direitos originários (indigenato) sobre as terras que tradicionalmente ocupam. As terras indígenas devem ser demarcadas e protegidas pela União. O reconhecimento da organização social das comunidades indígenas determina assim a orientação da política indigenista. O abandono implícito da vocação integracionista encontrada nos textos constitucionais anteriores abriu espaço para uma nova ótica que valoriza a preservação e desenvolvimento do patrimônio cultural indígena. Por sua vez, a recuperação jurídica do instituto do indigenato (figura comum nas leis e cartas régias do período colonial) assentou o reconhecimento de que a posse indígena da terra decorre de um direito originário, que por isso independe de titulação, precede e vale sobre os demais direitos (art. 231, caput);

  • as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, parágrafo 1º);

  • nas terras tradicionalmente ocupadas os índios detêm o direito de posse permanente e de usufruto exclusivo das riquezas dos solos, rios e lagos (art. 231, parágrafo 2º);

  • o aproveitamento dos recursos hídricos e a pesquisa e lavra mineral em terras indígenas somente podem ser realizadas mediante autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, que terão participação assegurada nos resultados da lavra, na forma da lei (art. 231, parágrafo 3º). Trata-se portanto de matéria que depende da aprovação de lei específica na qual se definirão os procedimentos e condições para a aprovação pelo Congresso de projetos de exploração de recursos hídricos e minerais em terras indígenas;

  • as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos que os índios exercem sobre elas são imprescritíveis (art. 231, parágrafo 4º);

  • os grupos indígenas não podem ser removidos de suas terras a não ser em casos de catástrofe ou epidemia, com o referendo do Congresso Nacional, ou no interesse da soberania, com aprovação prévia do Congresso (art. 231 parágrafo 5º);

  • são nulos, extintos e não produzem efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio ou a posse por terceiros e a exploração dos recursos naturais do solo, rios e lagos nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. A nulidade e extinção não geram direito de indenização ou de ação contra a União, salvo quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Ressalva-se, no entanto, a possibilidade de ocupação e exploração dos recursos naturais em caso de relevante interesse público da União, em circunstâncias a serem definidas em lei complementar (art. 231 parágrafo 6º);

  • os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, sendo obrigatória a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo (art. 232).
Por último, o Artigo 67 das Disposições Transitórias determinou prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição para a conclusão da demarcação das terras indígenas. Esse prazo encerrou-se em 5 de outubro de 1993 sem que pudesse ter sido concluída a demarcação de todas as áreas indígenas no país.
O Estatuto do Índio
Desde a promulgação da Constituição de 1988, sentiu-se a necessidade de rever o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/73) de forma a compatibilizá-lo com o novo texto constitucional. Com esse propósito foram introduzidos na Câmara de Deputados três projetos de lei. O primeiro deles oriundo do Executivo e os outros dois que resultaram da contribuição de organismos não-governamentais. Para exame desses projetos a Câmara designou Comissão Especial que examinou o assunto a partir de 1992.
O substitutivo aprovado pela Comissão Especial é o projeto de lei que disciplina o Estatuto das Sociedades Indígenas. O projeto aguarda um pronunciamento final pelo plenário da Câmara.
Embora o texto atual do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/93) não descuide da preservação da cultura indígena, seu articulado empresta maior ênfase à "integração progressiva e harmoniosa dos índios e das comunidades indígenas à comunhão nacional", propósito que desde 1988 deixou de figurar entre os princípios constitucionais da política indigenista.
Os dispositivos atuais do Estatuto permanecem vigentes naquilo que não confrontem a Constituição. Por isso, sua leitura deve ser feita com a cautela de singularizar os aspectos que requerem adaptação ao novo texto constitucional. O aspecto mais importante é que a ótica da tutela de pessoas foi substituída pela da tutela de direitos. Seguem resumidas as principais disposições do Estatuto vigente.
Aplicam-se aos índios as normas constitucionais relativas à nacionalidade e à cidadania, mas o exercício dos direitos civis e políticos pelo índio depende da verificação de condições especiais, exigidas de todos os demais cidadãos. Estendem-se aos índios os benefícios da legislação comum sempre que possível a sua aplicação. Aplicam-se, com a ressalva de que não podem ser desfavoráveis ao índio, as normas de direito comum nas relações entre índios não-integrados e pessoas estranhas à comunidade. As relações de trabalho são fiscalizadas pelo órgão de proteção. Nas relações de família, sucessão, regime de propriedade e nos negócios realizados entre índios, respeitam-se os seus usos, costumes e tradições (normas consuetudinárias do grupo indígena), salvo se optarem pela aplicação do direito comum.
A lei nº 6.001/93 classifica os índios em isolados, em vias de integração e integrados. Na última categoria consideram-se os "incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura". Esta distinção perdeu instrumentalidade a partir da Constituição de 1988.
As terras indígenas devem ser demarcadas pelo poder público e registradas no Serviço (Secretaria) do Patrimônio da União. O Estatuto proíbe o arrendamento de terras indígenas, mas permite a continuação dos contratos existentes à época de promulgação da lei.
Os índios detêm a posse permanente nas terras tradicionalmente ocupadas e o usufruto exclusivo das riquezas naturais aí existentes, que compreende o direito de percepção do produto de sua exploração econômica.
O reconhecimento da posse indígena independe da demarcação. A posse deve ser assegurada respeitando-se a situação atual e o consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação indígena na área.
As terras indígenas podem ser de três tipos: terras tradicionalmente ocupadas, terras reservadas e terras de domínio comum dos índios ou das comunidades.
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas de que trata o parágrafo 1º do art. 231 da Constituição Federal. Em princípio, não se confundem com os outros tipos previstos no Estatuto.
As áreas reservadas são aquelas destinadas pela União à posse e ocupação pelos índios. Podem tomar a modalidade de reserva indígena, parque indígena, ou colônia agrícola indígena, ou território federal indígena.
As terras de domínio indígena são aquelas de propriedade plena do índio ou de comunidade indígena, adquiridas de conformidade com a legislação civil (compra e doação, por exemplo). O índio que possuir como seu imóvel menor de 50 hectares adquire a propriedade plena ao cabo de 10 anos (usucapião indígena).
O órgão federal de proteção aos índios é responsável pela gestão do patrimônio indígena, que inclui, dentre outros bens, as terras pertencentes ao domínio dos grupos indígenas, o usufruto das riquezas naturais nas áreas reservadas e nas terras tradicionalmente ocupadas.
A gestão do patrimônio indígena deve propiciar a participação dos grupos indígenas, ou lhes ser inteiramente confiada caso demonstrem capacidade efetiva para tanto. A renda resultante da exploração econômica do patrimônio deve ser destinada preferentemente a programas de assistência ao índio.
Nas terras indígenas é vedada às pessoas estranhas à comunidade a prática de caça, pesca, coleta de frutos, atividade agropecuária ou extrativa.
A faiscação, garimpagem e cata nas terras indígenas somente podem ser exercidas por integrantes do grupo.
É assegurada a participação dos índios no resultado da exploração dos recursos do subsolo.
O corte de madeira está condicionado à existência de programas de aproveitamento de terras na exploração agropecuária, indústria e reflorestamento. Observe-se, no entanto, que o Código Florestal (Lei nº 4.771/65) trata como de preservação permanente as florestas existentes nas áreas indígenas.
O Estatuto inclui também normas sobre respeito ao patrimônio cultural, educação bilíngüe, assistência à saúde, e normas penais contendo a definição de crimes contra a cultura e a pessoa do índio.
Regulamentos Institucionais
A lei nº 5.371/67 autorizou o Governo Federal a instituir a FUNAI, sob a forma de fundação de direito privado, com as atribuições de estabelecer as diretrizes de política indigenista, exercer a tutela dos índios não-integrados, gerir o patrimônio indígena, promover estudos e pesquisas, prestar assistência médico-sanitária, educação de base, e exercer o poder de polícia nas áreas indígenas.
O Decreto nº 564, de 8 de junho de 1992, aprovou os Estatutos da FUNAI atualmente em vigor.
Com a criação da FUNAI, foi extinto o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910 por iniciativa do Marechal Rondon.
O Museu do Índio, com sede no Rio de Janeiro, é órgão integrante da Fundação.
Ao ser criada, a FUNAI ficou sujeita à supervisão do antigo Ministério do Interior. Em março de 1990, a FUNAI foi transferida para o âmbito do Ministério da Justiça.
A legislação mais recente sobre aspectos inter-institucionais na execução da política indigenista está contida no decreto nº 1.141, de 19 de maio de 1994. Esse decreto revogou disposições anteriores contidas nos decretos nº 23, 24 e 25, de 4 de fevereiro de 1991, que, respectivamente, atribuíam responsabilidade a diferentes órgãos da administração federal na implementação das ações de assistência à saúde das populações indígenas, proteção do meio ambiente em suas terras, e implementação de projetos e programas de auto-sustentação.
O decreto nº 1.141/94 criou uma Comissão Intersetorial, instância de articulação entre os Ministérios da Saúde, Meio Ambiente, Agricultura, e Cultura, além da FUNAI. O decreto delega à FUNAI a tarefa de coordenação das ações de assistência aos índios, mantendo entretanto a autonomia dos demais órgãos em relação ao orçamento e políticas setoriais de atenção aos índios.
O decreto nº 26, de 4 de fevereiro de 1991, atribuiu ao Ministério da Educação a coordenação das ações de educação escolar indígena.
O decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, que substituiu o decreto nº 22, de 4 de fevereiro de 1991, dispõe sobre o procedimento administrativo para a demarcação das áreas indígenas. Com a edição do decreto nº 1.775/96, sugerida pelo Ministério da Justiça, inclui-se expressamente nos procedimentos administrativos de demarcação o chamado "princípio do contraditório" amplamente consagrado na Constituição.
O ingresso em áreas indígenas por pessoas estranhas à comunidade depende de autorização prévia do Presidente da FUNAI. Os estrangeiros residentes no exterior devem tramitar o pedido de autorização de ingresso por intermédio das repartições diplomáticas e consulares do Brasil.