foto: Ligia Simonian, 1987 |
DURANTE trezentos anos, a região leste do
Estado de Minas Gerais não podia ser devassada. A Coroa portuguesa
impedia a passagem direta da região das minas até o litoral, para evitar
o contrabando de ouro e diamantes. Criou-se, assim, o chamado “sertão
do leste”. Com o esgotamento das minas, no fim do século XVIII,
tornou-se indispensável derrubar e explorar a Mata Atlântica e
exterminar os chamados índios “botocudos”, que enfrentavam os
colonizadores. Houve, portanto, o genocídio dos índios. Atualmente, as
comunidades indígenas estão renascendo e se fortalecendo, exigem
respeito pela sua identidade étnica e o atendimento de suas
necessidades.
Nasci em 1953, pois, do final de 1920 até
a década de 1940, todas as famílias indígenas foram assentadas por
Rondon na reserva do Posto Indígena Guido Marlière, que fica nos
municípios de Resplendor e Conselheiro Pena, na margem esquerda do Rio
Doce. Nasci do outro lado do rio, porque naquela época essa área começou
a ser ocupada pelos criadores de gado. Eles enxotaram os índios dali,
que fugiram para o Pankas, no Espírito Santo. Outros foram para o lado
do Kuparak.
naquele lugar houve um massacre causado
pelos colonos. Incendiaram a aldeia, fuzilaram crianças e as mulheres e
mataram muitos a facão. Isso ocorreu no final dos anos 1940 e 1950 e não
havia ali nenhuma família instalada pacificamente.
Até 1970, toda a minha gente permaneceu
naquele lugar algum tempo – uns por três meses, por um ano e meio –
quando da refrega com os colonos. Acabaram todos expulsos. As últimas
famílias que persistiam em permanecer foram arrancadas de lá, amarradas
em correntes em cima de caminhões e despejadas em outro sítio, que a
Secretaria da Agricultura de Minas Gerais trocou com a Fundação Nacional
do Índio (Funai) a fim de liberar terra indígena para a colonização.
Despejaram os índios em propriedades da
Corregedoria da Polícia, numa Colônia Penal, ou coisa assim. A
perspectiva era aniquilar mesmo com o resto das famílias dos índios.
Nesse lugar chamado Fazenda Guarani, em Carmésia, foram despejadas
algumas famílias. Outras foram para Goiás, porque tinham parentesco com
pessoas que viviam na Ilha do Bananal e nunca voltaram. Andei junto com
meu pai e com alguns tios e fomos para o interior de São Paulo.
Sou um autodidata. Frequentei uma escola
públicaem São Paulo, de primeiro grau. Fiz um curso de artes gráficas no
SENAI, quando tinha dezenove anos. Esse aprendizado é que me deu
habilitação para fazer todas as coisas que consegui fazer, inclusive
obter de volta as terras que os colonos tomaram de minha família. Hoje é
uma aldeia Krenak – o Posto Indígena Guido Marlière. O Estado de Minas
respeita os limites dessa terra, pois é da União e o usufruto é dos
Krenak.
Nos últimos vinte anos, conheci alguns
dados que estavam escondidos sobre os “Botocudo”, pois só eram
publicados documentos do Arquivo Público Mineiro, apenas informando
sobre as campanhas militares contra a minha gente. Depois disso,
recentemente, passei a conhecer materiais que estavam fora do Brasil –
na França e Portugal. Também tive a oportunidade de visitar um acervo
sobre os “Botocudo” num museuem São Petersburgo, na Rússia. Foi um
acaso, porque fui atrás de restos da cultura material de meu povo. Esses
dados estão em meu texto “O baú do russo”, uma historinha curtinha,
onde relato a aventura dessa expedição científica. Nela, há cem anos, no
meio de um acampamento “Botocudo”, baixaram alguns homens,
remanescentes das campanhas do francês Guido Thomaz Marlière, um
jacobino que defendeu minha gente. Marlière teve contato com aqueles
guerreiros que conseguiam se articular, fechar os caminhos e dar uma
surra nos brancos, desmantelados e sem coesão.
Nessa ocasião, os “Botocudo” estavam
desbaratados, jogados nos pés-de-serra. Muitos foram para o vale do Rio
São Francisco, outros foram para o Rio São Mateus, e outros se
refugiaram para o lado do vale do Rio Mucuri. Havia poucos
assentamentos, pois os “Botocudo” dominavam poucos lugares. Ficavam
escondidos, parecendo uma manada de gente assustada.
Quando entrou em contato com os
“botocudos”, Marlière tentou rearticular um pedaço de gente dizimada,
tentando concertar uma política lançada com a declaração de guerra de
extermínio, assinada pelo príncipe regente, em 1808. Essa caçada brutal
aos “Botocudos” durou duas décadas. Nesse período, chamava-se de “Botocudo” todo ajuntamento de índios, principalmente os apanhados nas matas do Rio Doce, ou até o Espírito Santo.
Muitas pessoas, quando se referem a
“Botocudo”, pensam nessa gente do Rio Doce e, no máximo, no massacre da
cidade de Conceição do Mato Dentro. Os “Botocudo” não eram ribeirinhos,
mas gente do sertão. Gostavam de ficar na beira dos rios porque os rios
eram uma fonte de alimentação, além de uma orientação de rota. Na sua
natural sabedoria, buscavam lugares saudáveis e com água limpa. Só
quando a mata começou a ser infestada de brancos apareceram a malária e
outras doenças. Então, os “Botocudo” ficaram com medo de beira de rio.
Essa é a lição contada por nossas avós,
como ensina a memória de gente que tinha contato com os brancos. As mais
velhas que nossas avós viveram duzentos anos atrás. Elas, quando
contavam um caso, partiam do que era contado pelas avós delas.
Os “Botocudos” só começaram a sofrer com
as epidemias quando os brancos entraram na mata. Depois do contato com
os brancos é que apareceram as doenças, a mortandade de crianças e
moléstias na pele. Males levados pelos brancos para famílias de índios. A
ponto de os índios de um córrego não socorrerem índios de outros
córregos em contato com brancos. Eles até evitavam receber esses índios
nos acampamentos porque podiam trazer doenças. Os mais sabidos davam um
jeito de ficar sempre pelados, porque tinham medo das roupas usadas
pelos brancos.
Estou contando essas memórias,
desorganizadas no tempo, pois algumas são lembranças contadas em minha
casa. Outras são coisas publicadas em trabalhos de pesquisadores, ou
aprendidas em discussões em torno de questões fundiárias ou políticas,
nas quais foram surgindo documentos para elucidar alguns casos.
É o ocorrido, por exemplo, quando foi
discutido o direito dos “Botocudos” sobreviventes de conflitos sobre a
terra, em relação a territórios no médio Rio Doce. Isso porque houve
pesquisas em documentos de diferentes fontes para analisar dados do
impacto ambiental da hidrelétrica construída em Aimorés, quando foram
contratadas consultorias especializadas para fazer o relatório do
impacto ambiental.
Por isso, conseguimos uma bibliografia
extensa sobre diferentes períodos, de 1700 até 1800, esclarecendo
acontecimentos envolvendo a administração, o surgimento de vilas e de
fazendas, inclusive os primeiros empreendimentos de modelos capitalistas
consolidados mostrando como esse negócio foi mudando.
Teófilo Otoni, Na época, não
podia fazer outra coisa. Foi mais ou menos como o Orlando Villas Bôas,
pois esse também agiu como humanista no caso do Parque Nacional do
Xingu. Se Teófilo Otoni tivesse sido ouvido e respeitado os “Botocudos”,
esses não teriam sido aniquilados. Além disso, ele tinha também a
ambição de encontrar, no meio dos “Botocudo”, uma gente chamada de
aimoré – os tais índios Aimoré.
O Teófilo Otoni era um cara inteligente e
honesto. Depois de ter brigado com os “Botocudos”, continuava
procurando os aimorés, porque acreditava que eram uma tribo muito
valente e tinham um tipo de herança cultural diferente da dos
“Botocudo”. Acreditava serem um ramo na história dos “botocudos”. Ora,
aimoré é embaré, gente do mato, amba de gente.
Os aimorés não eram uma etnia. Eles eram chamados de aimorés pelos Tupi do litoral, muito sabidos. Eles chamavam todos índios do mato de embaré,
porque usavam esse nome no sentido de serem brutos. Eram jagunços dos
brancos e chamavam as outras tribos de gente do mato. Assim, esse nome
“aimoré” não nomeia um povo, era um apelido dados pelos Tupi. Teófilo
Otoni procurou esses aimorés no meio dos “Botocudo”. Não achou, mas
encontrou fragmentos deles, rastros deles.
Então, há uns chamados, por exemplo, Naknanuk. Nak é terra; até hoje no dialeto burum (índio na língua dos Krenak). Kren é cabeça. Então, somos os cabeças da terra. Esse grupo nosso é remanescente dos cabeças da terra. Mas há também os outros, uns refugiados que foram sobrando no meio de nossas famílias. São, por exemplo, chamados de Nakrehé, e tem os outros Pojitxá e os Gutkrak.
Quando você vai observar esses nomes,
entende uma coisa: tudo é nome de lugar. Seria equivalente chamar o
pessoal da serra de serrano; o pessoal da beira do rio de ribeirinho; o
pessoal de pântano de pantaneiro; e o pessoal da grota de groteiro.
Naquele contexto, chamavam todos de “Botocudo”.
Estive lendo o livrinho do Teófilo Otoni e
vi como ele mostrou ser inteligente ao observar todo mundo falando
desses aimorés, mas ninguém descreveu esses aimorés. Mas sobre os
“Botocudos” há diversas referências e ordens sobre os quartéis
espalhados, entre Espírito Santo e Minas. Informações sobre centenas
deles presos, vigiados e impedidos de sair dos quartéis. Isso ocorreu no
final do século XVIII, quando os administradores estavam apavorados e
por isso pediram uma ordem de guerra contra os “Botocudos”.
Além disso, esse fato coincide com a
liberação do caminho das minas. É insistente essa informação de
historiadores escrevendo sobre a liberação da passagem pela floresta do
Rio Doce depois de haver se esgotado a extração de diamantes e ouro.
Só depois que liberaram a mata, viram
como ela estava cheia de tribos. Até o final do século XVIII, os
“Botocudos” ficaram à vontade na mata do Rio Doce. Durante uns cento e
tantos anos ficaram ali e a Coroa não tinha nada a ver com aquilo.
Depois os brancos decidiram descer o cacete. Antes somente se
interessavam pela madeira existente na mata.
Quero colocar uma questão-chave. Há muitas informações sobre o massacre ocorrido na guerra ofensiva decretada pelo príncipe regente, em 1808.
Mas não tenho clareza como terminou a guerra. A partir da pregação de
Guido Marlière e de Teófilo Otoni, como os “Botocudo” se juntaram? A
tradição oral, que chegou até a minha geração, diz que a guerra nunca
cessou. Só diminuiu porque um dos lados não tinha mais contingente para
combater. Mas os “Botocudos” continuaram sendo sangrados como galinhas,
ao longo de todo o século XX.
Darcy Ribeiro apresentou esses índios
como extintos. Uma vez, quando ele era secretário de Cultura, do governo
Brizola, fui visitá-lo com um grupo de guaranis no Rio de Janeiro. Por
coincidência, nesse dia havia caído um temporal. Fomos andando a pé, da
rodoviária até a Secretaria. Parecíamos uns pintos molhados. O guarda da
Secretaria estranhou e disse que o secretário não iria receber aqueles
pedintes descalços, com calças e camisas molhadas. Mas, apesar disso,
entramos no gabinete do Darcy para cumprimentá-lo e ele perguntou como é
que estávamos. Respondi: “Como você disse que nosso povo está extinto,
um fantasma veio lhe visitar. Porque, pelo seu livro, estamos mortos.
Quem está extinto não dá notícia”.
Darcy deu uma risada e perguntou:
“Continua a matança em cima de vocês?”. Falei: “Claro que continua. Vim
aqui pedir sua intervenção junto ao governo para que a Funai e as outras
agências do governo parem essa perseguição contra as restantes famílias
de ‘Botocudo’”.
O que aconteceu foi o seguinte: quando
acabou a guerra, se é que houve o final dessa guerra, uma missão de
capuchinhos estava tentando consolidar um assentamento onde viviam mais
de 2.700 “Botocudos”. Uns cacos de gente, no final do século XIX, lá num
vilarejo em Itambacuri, no vale do Mucuri. Em 1893, houve uma rebelião.
Os índios mataram os que chefiavam a missão dos capuchinhos e saquearam
propriedades e sítios. De 1893 até 1910, 1915, havia muito
ressentimento e ninguém queria ver aqueles índios que fugiram da missão,
quase mansos, e que de novo viraram bravos. O problema é que nessa
segunda rebelião os índios não estavam mais com arco e flecha, mas com
carabina. Começaram a assaltar as tropas com rifle e munição. Tomaram as
armas dos tropeiros e formaram uma jagunçagem. No meio dessa jagunçagem
surgiu um capitão, um sujeito guerreiro, o capitão Krenak.
Esses guerreiros deram muito trabalho na ocupação do Rio Doce, naquele lugar, que hoje tem o nome de Nanuk,
palavra na língua dos “Botocudo”. Nome de um cara rebelde, que
comandava uma horda de bravos guerreiros, cercando as tropas. Seguiam
pela rota de tropeiros que havia na região, tomando suprimentos de
qualquer provedor. Alimentavam os grupos de seus guerreiros na Serra dos
Aimorés.
Foi aí que o marechal Rondon, com o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mandou seus bons
indianistas/sertanistas, que saíam do Rio de Janeiro, de Cuiabá e de
outras regiões, para pacificar os “Botocudo”. Assim foram pacificados
esses últimos guerreiros. Desses sertanistas, alguns eram oficiais. Eles
atribuíram a patente de capitão a esse Krenak. Somos descendentes da
família dele. Trocou o botoque dele, com um fotógrafo, por comida.
Roquete Pinto fez uma foto dele quando ele já estava tuberculoso. Em
troca de sua foto, ganhou os brincos e os anéis da orelha, que foram
levados para o museu.
Desse período de 1910-1925, são pequenas
narrativas que contam os momentos de visita de autoridades, os momentos
de namoro e depois os momentos de matar todo mundo. Até que, em 1922,
por orientação do marechal Rondon e da turma dele que havia criado o
SPI, houve a localização desses índios.
Rondon deu um jeito para arrumar um lugar
para aqueles índios, demarcando uma reserva, um território para eles, e
liberava o entorno dos assentamentos. Chamava trabalhadores nacionais e
organizava uma colonização. Rondon dirigia, ao mesmo tempo, o Serviço
de Proteção dos Índios e também a localização de trabalhadores.
Acompanhando a história do Brasil até a
Constituinte de 1988, não só em Minas, mas no Brasil inteiro, a
perspectiva do Estado brasileiro era acabar com índio. Só que na
Constituinte houve uma grande pressão para mudar essa política.
Esse negócio de a literatura dizer que os
“Botocudo” eram antropófagos é um ato falho, é um truque da má
consciência neobrasileira formadora do Brasil. Eles tinham de dizer que
minha gente era antropófaga para nos aniquilarem. Participei na
Constituinte de 1988 pintando a cara de preto no Congresso Nacional.
Estava com 36 anos de idade quando fiz aquilo. Fui defender a emenda
popular, pois não se defendia o artigo 231 da Constituição porque ele
afirma que o Brasil precisa parar de matar índio e assegurar os direitos
para os índios restantes.
Isso tudo foi uma ruptura com o que havia
acontecido no passado. Mudança que o Estado não conseguiu assimilar até
hoje, pois o Estado ainda tem cacoetes. O Estado parece uma daquelas
feras que ficam mansas, mas, de vez em quando, ainda comem alguém. Ainda
agora há os pit bulls soltos láem Roraima. Eles se esquecem de
que há uma Constituição. Mas o ministro do Supremo Tribunal Federal
lembrou muito bem em seu voto, dizendo: “Tirem os dentes, tirem as
presas”. O que aconteceu da Constituinte para cá foi um fenômeno
fantástico, o surgimento de nova identidade.
No século XX,em Minas Gerais, se dizia
que não havia mais índios, ou que no máximo havia “Botocudo”
sobreviventes e Maxacali (aqueles de Mucuri, de Santa Helena e
Bertópolis). Esses Maxacali são um fenômeno impressionante, pois não se
aculturaram. Você chega numa aldeia maxacali e eles estão falando a
língua deles, vivendo na religião deles, vivendo no mundo deles. Pelo
menos nos últimos duzentos anos ficaram isolados. Tempos atrás estiveram
em Diamantina e em outras regiões, no Jequitinhonha. Mas, nos últimos
duzentos anos, fizeram um movimento e se fixaram nessa região do Mucuri.
Eram inimigos preferenciais dos “Botocudo”. Quando não havia branco
para brigar, os “Botocudo” brigavam com os Maxacali. O que resultava em
roubo de mulheres de um lado e do outro. Logo, nós somos parentes, somos
parentes porque nossos grupos guerreavam e tomavam crianças uns dos
outros, e mulheres uns dos outros.
Os maxacalis eram considerados as últimas
famílias indígenas sobreviventesem Minas Gerais, quando, por volta de
1970/1980, houve o ressurgimento dos Xacriabá que estavam submersos na
história e começaram a reivindicar terra, direitos e identidades. Hoje é
a população indígena mais numerosa do Estado de Minas. São mais ou
menos oito mil índios, enquanto os Krenak são duzentos e poucos.
Numericamente nós não existíamos e eles existiam. Mas até o século XX
não existiam.
Hoje os Maxacali são uns 1.200 ou 1.300.
Se juntar esses povos, que ficaram nesse lugar demarcado, atravessaram o
século XX, eles são os Krenak, Maxacali e Xacriabá. Hoje, quando se
olha o site da Secretaria de Governo encontram-se nove tribosem
Minas. Que fenômeno é esse? Os Patachó, que fugiram lá da Bahia,
perseguidos pela turma do Antônio Carlos Magalhães, se refugiaram em
Minas, na década de 1960/1970. Os índios parentes de Graciliano Ramos,
de Palmeiras dos Índios, Xukuru-Kariri, fugiam da miséria, do desmando
político, da violência, e vieram para o sul de Minas, que os recebeu.
Aqui há três grupos de famílias indígenas: Pataxó, Xukuru-Kariri e
Pacararu.
Foi tão bom esse período de ressurgimento
das comunidades indígenas que, quando o governador Aécio Neves me
chamou, em 2003, e me perguntou como estavam os índiosem Minas Gerais,
respondi: “Estão muito mal”.
O que dá resultado é tratar esse conjunto
de famílias tribais, remanescentes desses povos – Xacriabá, Maxacali e
inclusive dos que migraram para cá vindos do Nordeste, Pataxó,
Xukuru-Kariri, Pacararu, além dos nativos Aranã e Kaxixó – como cidadãos
que têm direito à proteção do Estado, sem discriminação. Eles têm
direito às políticas públicas no sentido de atendimento às mães, quanto
ao nascimento de seus filhinhos, o pré-natal e o acompanhamento dessas
mães até que a criança faça cinco anos de idade. Têm direito à
alimentação. Deve-se respeitar o direito dos índios de continuar morando
em casa de palha que fizeram, dando a eles e elas a oportunidade de, se
quiserem, ter uma habitação adequada. Porque não admito que arranquem
um costume, que é próprio de uma família indígena, para botá-la num
conjuntinho residencial do Banco Nacional de Habitação (BNH).
A gente não tem povo indígena vivendo num
apartamento do BNH ,em Minas Gerais, pois temos nos esforçado para
arrecadar terras públicas, seja terra da União seja terra do Estado,
para criar assentamentos adequados para atender às necessidades dessas
famílias indígenas. Uma família indígena reduzida a 200 ou 300
indivíduos não quer viver nos fundos de uma fazenda, hostilizada por
pecuaristas ou por garimpeiros. Ela sente a necessidade de estar num
lugar mais parecido com essas unidades de conservação, num parque ou
numa unidade biológica.
Estamos argumentando no sentido de que os
índios possam ter acesso a um lugar desse tipo e que o Estado crie os
instrumentos para que eles possam viver desse modo, não agredidos pelo
município ou pelos vizinhos. Isso deve ser feito através das secretarias
de Estado, como as da Saúde, do Meio Ambiente, de Agricultura ou de
Bem-Estar Social. Programas públicos para realizarem ações que atendam a
questões como água potável, para eles pararem de beber água de córrego
que está envenenada com agrotóxico, com esgoto, com detritos de todo
tipo.
A água do Rio Doce está muito ruim. No
meio dela há partículas de mercúrio, bauxita e outros minérios pesados,
fora os resíduos jogados no Rio Doce pelos municípios, desde o Rio
Piracicaba. Quando a gente toma banho, sai bronzeado, mineralizado. Num
seminário no médio Rio Doce acusei os municípios de serem responsáveis
por jogarem detritos no rio. Uma pessoa se levantou e disse: “Em
Ipatinga não se faz mais isso, pois tratamos de nossa água, antes de
jogá-la no Rio Doce”. Ora, mas,em Governador Valadares, jogam restos de
hospital, sofás velhos, televisões e até geladeiras dentro do rio. Todo
mundo na beira do Watu (nome que os índios dão ao Rio Doce) acha que ele
é o depósito de todos seus restos.
Temos um programa chamado Piei (Programa
Estadual de Implantação das Escolas Indígenas). O Estado de Minas tem
hoje duas mil crianças indígenas em sala de aula, com professor bilíngue
da aldeia. Todas a aldeias têm uma escola indígena bilíngue, com
professor nativo local, que foi habilitado pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em oito módulos de quatro anos, para se tornar um
professor habilitado em magistério.
Desses professores, 140 deles estão
fazendo licenciatura na Universidade e vão se graduar em 2010 como
educadores em língua e literatura. Nossa população é de nove etnias
diferentes. Dessas etnias, só três mantêm a língua materna. Mas mesmo
aquelas que não têm a língua materna estão tendo subsídio e material
didático de apoio a fim de trabalharem a reintrodução da língua materna.
Estamos gerando esses materiais com apoio não só em programas
estaduais, mas também em programas federais, porque o Ministério da
Educação tem um comitê de educação indígena que foi implantado no
governo de Fernando Henrique. Esse comitê tem se constituído num espaço
bem democrático de pluralidade.
O material didático é impresso em
português e na língua materna, caso o grupo tenha memória da língua
materna, porque não tem sentido mandar um texto escrito em língua tupi
do tempo de Anchieta para uns remanescentes de índios tupis, mas que não
conhecem mais essa língua.
A disputa religiosa, não é feita somente
pela igreja católica, atualmente foi incrementada pela chegada dos
evangélicos. Antes, os missionários queriam só as almas dos índios,
agora eles disputam com os evangélicos a governança dos índios. Se você
catequiza o índio e o deixa seguir a vida dele, tudo bem. Mas se
catequizá-lo e ficar mandando, fazendo a governança de suas vidas,
organizando em comunidades, sindicatos, associações e coisa que o valha,
isso eu acho grave.
A disputa dos índios por católicos e
evangélicos cria um agravamento da crise de identidade desses índios.
Essas disputas são esvaziadoras do conteúdo cultural que os índios
herdaram. Estou falando da Pastoral da Igreja Católica, mas os
evangélicos também estão fazendo a mesma coisa. Querem ficar pau a pau
com os católicos para ver quem controla o índio.
Com aquelas mudanças do concílio dos anos
1960/1970, aquelas coisas de Leonardo Boff, da Teologia da Libertação,
dizem que estão espalhando cultura ecumênica. Os missionários da
Teologia da Libertação falam com os índios que estão encarnando a
cultura indígena. Você pode encontrar um missionário dançando com o
pajé, mas esse negócio do missionário dançar junto com o pajé é só
conversa. Porque na verdade, quem prega, quem instala o bastão lá
dentro, prega a cruz, marca a hora do catecismo, é o missionário, não é o
pajé.
O que observo nessa virada do século XX
para cá é que o fenômeno da globalização, junto com essas outras
manifestações locais, como a disputa com os evangélicos, estão jogando
os índios num liquidificador, indiferentemente se são índios
tradicionais ou índios aculturados. Eles querem tirar daí médicos,
técnicos, vereadores, políticos, administradores, educadores,
professores.
Na verdade, costumo dizer o seguinte:
dois séculos de guerra bruta não conseguiram fazer o serviço que um
pequeno período de democracia está fazendo – o de integrar de maneira
absoluta essa diversidade cultural.
Índios são uma generalização absurda,
porque acaba com isso que nós estamos falando que é a possibilidade do
menino na aldeia ensinar a seus irmãos, do avô ensinar a seus netos a
sua história, ensinar na sua língua seus valores e a sua tradição.
Esvaziam tudo isso e enfiam lá um monte
de representação e dizem: “Essa é do comitê de não sei o quê”, “o
conselho de mulher”, “o de saúde”, “de educação”. Eles vão esvaziando a
identidade desse índio e ele acaba virando uma espécie de uma figura
parecida com sindicalista.
Essa novidade de todo mundo virar cidadão
(de forma compulsória) tira também das pessoas a possibilidade de elas
continuarem vivendo de alguma maneira a memória de sua tradição, de sua
cultura. Daqui a pouco eles vão perder a possibilidade de ter um
terreiro dentro da aldeia onde as pessoas ficam sentadas, calam a boca e
escutam os velhos. E quando um velho vier e falar assim: “Esse
mês nós vamos nos recolher numa ilha do Watu e vamos fazer os ritos de
passagem dos que têm menos de onze anos de idade. Eles vão ficar
afastados do convívio de suas mães e de suas famílias e vão ser
iniciados na história dos velhos que não podem ser contadas
publicamente. Quando não puder fazer mais isso não irá fazer diferença
nenhuma ter língua diferente. Papagaio repete também língua diferente!”.
A importância de ser bilíngue e de ter
liberdade para pensar é continuar uma narrativa, seja recebida no sonho,
nos ritos, nisso que eles chamam de religião. Índio não tem religião. O
mais autêntico que a gente pode identificar num núcleo de uma prática
dessas famílias desse povo antigo é a continuação da tradição. Uma
tradição que remonta aos mitos da criação do mundo.
Então, assim é muito bom quando os Krenak podem se recolher no taruandé, que é um rito que os Krenak guardaram na memória deles. Taru é o céu, taruandé é um movimento que o céu faz de aproximação com a Terra. No taruandé
os meninos que ainda estão engatinhando, os homens, as mulheres, os
mais velhos cantam e dançam juntos, como uma brincadeira de roda.
Repetindo frases na sua língua materna que diz: “O meu avô é a
montanha”, “Você é meu avô e o rio”, “Você é peixe pra eu comer”, “Você
me dá remédio para a minha saúde”, “Você esclarece minha mente e meu
espírito”, então “O vento, o fogo, o sol, a lua”.
Ficam repetindo essas frases na sua
língua ancestral, batendo o pé no chão, tocando maracá, acendendo fogo,
pulando na água fria, buscando saúde, fazendo a terapia muito especial e
afirmando a sua própria identidade diante do mundo avassalado por
propaganda, consumo e besteiras de todo lado.
O que eu valorizo é isso. É que ainda
possa ter famílias que olham para si mesmas; não sintam vergonha de ser
quem são; não têm vergonha de morar em casa de chão batido; não têm
vergonha de cozinhar num fogareiro de cupinzeiro, em cima de pedra; não
têm vergonha de comer carne moqueada, comer peixe moqueado assado na
pedra, comer batata e mandioca tiradas de baixo das cinzas; não têm
vergonha de fazer isso. Acham que fazer isso é um jeito de continuar
sendo “Botocudo”.
Ora, os árabes, os judeus, os japoneses
também batem tambor, comem de palitinho. É um jeito de eles continuarem
sendo árabes, judeus, japoneses. Por que a gente não pode continuar
sendo “Botocudo” em qualquer lugar? Essas pessoas têm que ter o direito
de continuar ensinando para seus filhos os valores que até hoje eles
trouxeram vivos consigo.
O governador Aécio Neves
me perguntou: “O que dá pra fazer pelos índios?”. Respondi: “Podemos
fazer o que Guido Marlière fazia quando cuidou da questão dos índios, no
gabinete militar do Império”. Então, desde 2003, o governador me deu um
mandato, de assessor especial para assuntos indígenas. Sou vinculado à
Secretaria de Governo. Ele me disse então: “Você vai criar o programa
para inclusão social dos que ainda restam de povo indígena no nosso
Estado, porque não queremos que sejam aniquilados e desapareçam”.
Assim, de certa maneira, a guerra contra
os índiosem Minas Geraissó parou com o governador Aécio Neves. O
governador me perguntou se teria sentido criar uma Secretaria de
Assuntos Indígenas. Respondi que em Minas não há uma população indígena
que justifique a criação de uma Secretaria de Estado. Assim, propus
fazer meu trabalho no gabinete dele. Disse-me que, então, eu deveria
trabalhar em nível de igualdade com qualquer secretário. Empossou-me e
avisou aos demais secretários para colaborarem comigo, a fim de cumprir
minha missão. O objetivo é trabalhar para que em Minas sejam respeitados
os direitos humanos e sociais dos índios.
Tenho, portanto, o compromisso de agir
assim até 2010. Nosso propósito é criar um Centro de Referência da
Cultura Indígena e um Memorial Indígena, na Serra do Cipó, um sítio que
se chamará Monumento Natural da Mãe D’Água. O Instituto Estadual da
Floresta, junto com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais (Ibama), está demarcando esse sítio. É cheio de
grutas, cavernas e sítios arqueológicos da maior relevância. Dentro
desse memorial vamos recolher o acervo que foi para a Rússia, a fim de
resgatarmos cem anos da cultura material dos “Botocudo”. Eles são os
primeiros registros das escritas fonéticas de “Botocudo” gravados por
essa expedição russa. Em torno desse acervo deveremos ter um espaço para
a formação de jovens indígenas, a fim de administrar seus territórios,
tendo em vista sua educação e saúde, além de outros objetivos.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142009000100014&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt entrevista completa.PESQUISA REALIZADA PARA FINS DIDÁTICOS
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