Missionários sem cruz Os brancos ajudam no ensino e na saúde,
mas sua maior missão é
preparar os índios para o futuro Silvio Ferraz, do Xingu
Fotos: Paulo Jares
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| André Villas Bôas, há 21 anos entre os índios. O dentista Eduardo Biral, a enfermeira Stela Würkir, sua mulher, e o filho, Januário, um Tarzan brasileiro
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Eles não usam barba, elas têm cabelos compridos e tranças. Esguios, alimentados a peixe moqueado com biju, mingau de amendoim e frutas. Falam baixo, dormem cedo e só têm uma conversa: índio. É a tribo dos brancos composta de cientistas sociais, médicos, pedagogos, enfermeiras, biólogas e engenheiros agrônomos, vindos de diversas regiões brasileiras. Boa parte da engenhosa engenharia social e cultural que mantém o Parque do Xingu funcionando em harmonia se deve ao trabalho desses especialistas. O foco agora é preparar os índios para o inevitável confronto com a civilização que um dia ocorrerá. As cidadezinhas vizinhas do parque vão transformar-se em municípios de porte médio, a urbanização baterá às portas da reserva. Os moradores do parque, cada vez mais, dependerão de produtos fabricados pelo branco. Em todos os momentos da humanidade, sempre que o choque ocorreu, o mais forte sobrepujou o mais fraco. Quase sempre de forma violenta. Neste canto do Brasil, um punhado de brancos está conseguindo driblar essa inevitabilidade. Procuram transformar o abraço sufocante em um caminhar de mãos dadas de culturas tão diferentes. Com um pé na selva e outro no asfalto, André Villas Bôas é o "cacique" dessa tribo de brancos. Diretor do Instituto Socioambiental, ONG paulista apoiada pelo governo da Noruega e pelo cantor Sting, convive com os índios há 21 anos. Apesar do nome, André tem apenas um longínquo parentesco com os irmãos Villas-Boas, inspiradores do Parque do Xingu. Depois de ter morado com os xavantes, no Solimões, com os tikunas, no Alto Solimões e no Xingu, o cientista social conduz o mapeamento, por meio de satélite, de toda a região xinguana. Nele aparecem, sem retoques, as ameaças externas: o avanço do desmatamento, a destruição das cabeceiras dos rios, a poluição ambiental.
Fotos: Paulo Jares
| Índios aprendem a ensinar as crianças de suas tribos: geografia, história e cálculos |
Outro que optou pelo verde, deixando para trás uma clínica potencialmente rendosa em São Paulo, é o dentista Eduardo Biral. Com uma frase, traduz a complicação que se instala na cabeça dos que convivem com ele: "Minha família acha que sou comunista, os índios pensam que sou milionário e meus colegas paulistas, que sou pirado". Eduardo acha que seu destino é tratar os dentes dos índios numa cadeira de tábuas, à sombra de uma mangueira. "Sou um escultor de dentes", diz, com luvas cirúrgicas, tratando a fila de crianças e adolescentes dos índios suyás. Usa um cimento dental muito resistente desenvolvido pelos americanos durante a Guerra do Vietnã, e, enquanto obtura as cáries, sussurra delicadamente com os pacientes na própria língua suyá. Os kayapós, da aldeia metuktire, levaram o reconhecimento a Biral mais longe. Nomearam Takakran e Koiman Tekré, seus pais adotivos. Sua mulher, Stela Würkir, enfermeira, há vinte anos trabalhando com os índios, deixou Higienópolis, bairro paulistano, e embrenhou-se na mata em 1980, de onde nunca mais saiu. Stela criou no Xingu um grupo de "agentes de saúde", índios treinados para suprir a ausência de enfermeiras e médicos nas emergências. De seu casamento com Biral nasceu, em 1982, Januário, o "Janu", ou "Bep Kangró", como querem os que moram na aldeia Metuktire. É o Tarzã brasileiro. Nas noites de luar pode ser visto de pé numa esquálida canoa, pescando jacarés com arco e flecha. "Desde os 12 anos é ele quem abastece de proteína a casa", orgulha-se o pai. Faz grande sucesso entre as índias e seus melhores amigos são índios. Janu não se perturba com a dupla nacionalidade. Não abandonou a civilização dos brancos. Estuda por correspondência, no curso especializado do Anglo-Americano, tradicional colégio carioca.
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Maria Cristina Troncarelli, pedagoga, ex-artista de circo: currículo adaptado |
"Bimba", como é mais conhecida a professora paulista Maria Cristina Troncarelli, 37 anos, dos quais quinze no Xingu, foi atriz e engolidora de fogo nos circos do ABC paulista antes de ir para o mato. Hoje toca um programa educacional adaptado para os indígenas. Seu entusiasmo contagia os 53 instrutores tribais reunidos a sua volta, para aprender a língua dos brancos. Entre os índios, quanto melhor falar o português, maior status na tribo. O português, na região, é o idioma do entendimento, já que as catorze etnias têm línguas próprias. Sem preconceitos, sua didática recorre a vídeos ou a palestras de velhos guerreiros. Seu curso atrai indígenas até do Acre. De sua união com um índio kaiabi nasceram as gêmeas que vivem em São Paulo e visitam os avós índios durante as férias.
Os agrônomos Geraldo Mosimann da Silva e Wemerson Ballester ensinam apicultura. Com trajes especiais, os 25 apicultores indígenas produziram 600 quilos de mel neste ano. A meta são 2 toneladas. Os índios estão a um passo de comercializar seu produto, com o apelo de marketing de ser produzido por floradas exóticas, desconhecidas pelo consumidor das grandes cidades. A bióloga curitibana Simone Ferreira de Attayde, mulher de Geraldo, é outra que enfrenta banho de rio, casa com chão de terra batida e baratas para organizar o comércio do artesanato indígena. "Estamos tentando manter viva a cultura dos kaiabis na confecção das lindas panelas de barro. Não é fácil. O barro daqui, quando vai ao fogo, racha", explica Simone. A tribo dos brancos no Xingu já enxergou o futuro. Nele, os índios, sem o paternalismo do governo, que criou e mantém em bases sólidas a reserva, terão de conviver com seus vizinhos. Quanto mais bem preparados estiverem, maiores serão as chances de manter seu modo de vida intocado. Os arquitetos da pacificação Foto: Hevio Rodrigues
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| Orlando (acima) chora na homenagem ao irmão Cláudio:
"Meu lugar é aqui" |
Rondon (ao lado) no mato desde jovem. Seu lema: "Morrer, se preciso for, matar jamais" |
Rondon e Villas-Boas são, no fundo, os pilares sobre os quais se assenta hoje toda a política indigenista que rege o Xingu. Sorte dos índios, sorte dos brancos. O homem que tinha como lema "Morrer, se preciso for, matar jamais" foi inspirado, no início do século, a embrenhar-se selva adentro, em locais onde o homem branco nunca havia pisado. O militar, sertanista e geógrafo Cândido Mariano da Silva Rondon dedicou a vida a promover a colonização do interior brasileiro. Por onde passava, Rondon pacificava e tratava a minoria selvagem. Descendente por parte de mãe dos índios terenos, o militar descobriu montanhas, rios, corrigiu mapas e construiu linhas telegráficas Brasil afora, rompendo até o isolamento da Bolívia e do Paraguai. A tribo bororo ficou tão reconhecida ao militar que lhe reservou um inusitado presente: a mais linda e mais jovem donzela. Rondon nunca a viu. Era um tímido. Seguidores da sua filosofia, os irmãos sertanistas Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Boas mergulharam na missão de desviar as tribos da rota da extinção. Ela ocorreria por conflitos armados ou por epidemias, à medida que os contatos com os brancos se tornassem mais intensos e freqüentes. Pacificaram as tribos do Xingu e inspiraram a criação de um santuário, o atual Parque do Xingu. Para lá levaram quinze etnias diferentes, cada qual com seus usos e costumes e, não raro, inimigas entre si. Pacificados, hoje os índios vivem o que chamam de "a longa trégua". Orlando é o sobrevivente, uma legenda. Seu irmão Cláudio é tido pelos índios yawalapitis como o "espírito do bem que zela por seu povo". Sobre Orlando, o cacique Aritana sussurra com olhos marejados: "Queremos ele bem vivo, mas quando chegar a hora repousará no Xingu". | Font= Revista veja Editora abril
Os guardiães do verde As tribos do Xingu em paz, mas alertas
para a guerra contra os destruidores da natureza Silvio Ferraz, do Xingu Fotos: Paulo Jares
| Posto Diauarum: porta de entrada das tribos para o Xingu. Festa da Taquara: diariamente, durante três meses, para afastar tristeza |
Defendido com bordunas, flechas e muita lábia pelos 3.600 índios de catorze etnias que habitam a região, o Parque Nacional do Xingu sobrevive milagrosamente sem poluição com sua fauna e flora intocadas. As fotos de satélite feitas do centro do país, onde está encravada a reserva indígena, são desoladoras. Pecuaristas e madeireiras transformaram a região em uma gigantesca mesa de bilhar. O negócio deles é tocado sem o menor respeito pela natureza, de modo que a floresta é queimada em busca de árvores de valor comercial ou simplesmente derrubada para se transformar em pasto. Sobrou uma ilha verde cercada de desmazelo ecológico, a terra dos índios do Xingu. Pergunte-se a dez habitantes do planeta Terra quem são os civilizados nessa região e a resposta nesses tempos ecologicamente corretos será: os índios. Educação Os índios preparam-se para gerir o próprio território. Aprendem português, geografia, ciências, cálculo porcentual e a fazer tabelas. Os cursos usam até vídeos. Os mais velhos são chamados para narrar as tradições de seus povos. Ser professor é um cargo cobiçado nas tribos. | Localizado no norte de Mato Grosso, divisa com o Pará, espalhado por 27.000 quilômetros quadrados, quase o tamanho da Bélgica, o Parque Nacional do Xingu foi uma iniciativa de sertanistas liderados pelos irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Boas. Materializada em 1961 pelo presidente Jânio Quadros, para preservar a cultura, os hábitos e a religião desses povos, ninguém dava nada pelo destino da reserva. Instalada em terras pertencentes à União, acabou vingando. Sem seringais nativos, livrou-se da cobiça dos exploradores. Os Villas-Boas buscaram uma política de preservação isolada. Ou seja, manter os índios o mais distante possível da cultura dos brancos. Assim conseguiram evitar os choques que teriam estraçalhado o lado mais fraco. Os contatos eram tão controlados que os indígenas eram obrigados a pedir licença quando iam viajar para os vilarejos mais próximos do Parque do Xingu. "Queríamos mantê-los longe da cachaça e dos bordéis", conta Orlando Villas-Boas, hoje acompanhando a vida no Xingu de sua casa no Alto da Lapa, em São Paulo, visitada periodicamente por seus amados índios. Fotos: Paulo Jares
| Jovens da tribo Kamaiurá passam urucum contra os mosquitos. No Xingu a expectativa de vida subiu para 50 anos | Saúde A população recebe cuidados médicos da Escola Paulista de Medicina. Já houve um caso de Aids. Os índios escovam os dentes três vezes ao dia, num programa da Colgate-Palmolive que distribui 20 000 escovas e tubos de pasta de dentes por ano. |
"Nossa maior conquista foi a pacificação", garante Orlando. De fato, não foi fácil quebrar vocações guerreiras como a dos índios suyás. Seu esporte preferido era a guerra. Os jovens, desde cedo, recebiam cultura militar dos guerreiros e, dos mais velhos, histórias de grandes feitos. Quando a paz monótona se prolongava, os suyás tratavam de quebrá-la com expedições punitivas aos territórios dos jurunas ou dos kamaiurás ou trumais. Hoje, netos de avós que se odiavam bebem na mesma cuia sem temer a morte por envenenamento. Além da pacificação das tribos que se entredevoravam há menos de meio século, os brancos tomaram outra providência vital: a aplicação regular de vacinas permitiu o crescimento populacional. Atualmente, com uma taxa de natalidade de 3,6%, os índios se multiplicam mais velozmente que a média dos demais brasileiros. A expectativa de vida entre eles aumenta num ritmo mais animador que a dos demais grupos populacionais brasileiros. Chegou a 50 anos no ano passado e segue crescendo. A média brasileira, de 68 anos, continua subindo, porém mais lentamente que a dos índios do Xingu. Portanto, não está distante o dia em que, mantida a atual situação, os índios do Xingu estarão vivendo mais e, sem dúvida, melhor que seus vizinhos do centro geodésico do país. Graças à sabedoria de algumas lideranças indígenas e brancas, o Xingu é hoje um raro arranjo harmônico entre culturas díspares. Foram os brancos que escolheram a área da reserva e que pacientemente transportaram em aviões militares um a um todos os índios, vindos de vários pontos da Amazônia, para seu novo lar. Com isso tiraram os indígenas da rota certa do extermínio. Obviamente, não se faz uma transposição dessas sem um preço. Os brancos introduziram o sal na dieta e, com ele, a hipertensão arterial. Enfermidades cardíacas e diabetes, outros males que passaram a ser conhecidos dos índios. "Mais recentemente apareceu até um caso de Aids, o problema é raro, mas já preocupa", diz o médico Douglas Rodrigues, coordenador da equipe da Universidade Federal de São Paulo que, desde 1965, cuida das doenças mais sérias das tribos – entre elas as mais resistentes, gripe e tuberculose. São quatro viagens anuais à região, o que dá aos índios um padrão de assistência de muito boa qualidade. A nova geração xinguana aprende a preservar a natureza, mantendo a identidade. Inevitavelmente, convive com sandálias havaianas, pilhas, lanternas, calções de brim, camisetas do Flamengo e do Palmeiras e até mesmo clones de tênis usados na orla carioca ou nas ruas de São Paulo. Barcos de alumínio impulsionados por motores de popa de 25 cavalos, rádios, poucos aparelhos de televisão com antenas parabólicas movidas a bateria solar quebram o silêncio e completam as concessões ao modernismo. Fotos: Paulo Jares
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| O cacique Kuiussi, dos suyás, ladeado pelos pajés, reúne suas forças: seus guerreiros, as duas mulheres e as crianças. Índias yawalapitis ralam a mandioca-brava, base da alimentação sadia. |
Os guerreiros não vão mais à guerra, e a luta "huca-huca" virou esporte que só perde para o futebol | |
A viagem, descendo o rio, um mergulho no paraíso. As praias surgem a partir de maio e vão até setembro, quando as chuvas recomeçam e o rio sobe e invade as matas. As areias finíssimas, alvas e com pequenas dunas onde pousam garças e uma infinidade de pássaros silvestres emolduram a mata fechada. A duas horas do Posto Diauarum, aparece o Suiá-Miçu, afluente do majestoso Rio Xingu. Mais uma hora, despontam as primeiras malocas da aldeia rikô, da tribo suyá. O cacique é Kuiussi pintado com urucum, para espantar os enxames de mosquitos. Farta cabeleira negra penteada até os ombros, a narina esquerda sem um pedaço, sem que isso o faça mais amedrontador. Kuiussi chegou ao Xingu com 2 anos. Sua tribo desaparecia aceleradamente. Cláudio Villas-Boas livrou os suyás da extinção. Hoje eles são quase 300 orgulhosos sobreviventes. Até a língua suyá, que morria, revigorou-se. Economia Os kaiabis são mestres em panelas de barro e na cestaria. Os bancos dos kamaiurás, imitando animais, são cobiçados. Todos são agricultores. Mandioca, banana, amendoim e milho são culturas de base. Entre si, vivem de trocas. Começaram a exportar para São Paulo e Rio. | O coração do país é um lugar feliz. Ali, festa e trabalho se confundem. São 3 horas da manhã, e o silêncio da noite na floresta é cortado, de repente, pela batida surda dos tambores. Começa a festa do Kahrankasaka, a "festa do tracajá feio", a pequena tartaruga que povoa os rios da região. Só para homens. Chocalhos nas pernas e nos tornozelos, cantam e dançam em círculo até o sol raiar, em homenagem à chuva que faz a água, à água que faz o rio, ao rio que alimenta os peixes, aos peixes que alimentam os homens. O sol, a luz, o dia e a noite, as árvores, as onças e as pacas, antas e abelhas são homenageados. Até mesmo o rato. Os suyás acreditam que, por ter descoberto o milho, o rato merece graças. As mulheres também têm sua festa particular: a principal é a Yamurekumã, com data móvel. Reza a lenda que, cansadas de só comer o jacaré caçado pelos companheiros, elas os punem com uma greve sexual. Na noite em que o mito é relembrado, as índias surram os homens e nem o cacique e o pajé livram-se de boas bordoadas. É para feminista nenhuma botar defeito. Fotos: Helvio Romero
| Os yawalapitis amarram as pernas e os braços para realçar a musculatura. Altos, sadios, trabalham na agricultura e abastecem a casa com peixe e caça | Enquanto a civilização ainda engatinha com o v-chip, a solução eletrônica que vai permitir aos pais censurar os programas de televisão inadequados para seus filhos, os caciques do Xingu já resolveram o problema. Foram radicais. Eles perceberam que as brincadeiras das crianças tornavam-se violentas depois que assistiam a programas de televisão e simplesmente baixaram a ordem: desligar os aparelhos. Todo mundo obedece. A paz vale ouro quando se é obrigado a conviver num espaço territorial limitado. A transformação dos índios ykpengs de selvagens ranzinzas e agressivos a um povo que valoriza a convivência pacífica é emblemática no Xingu. O cacique ykpeng, também pajé, uma espécie de sacerdote e curandeiro, é Melobô, um "estadista ateniense", como é descrito pelo antropólogo Darcy Secchi. Apesar da fisionomia dura, Melobô ama a política e a negociação. É a voz de oposição a outra força política, o prestigioso Aritana, cacique dos yawalapitis, no Alto Xingu. No passado acabariam medindo forças num combate sanguinário. Hoje, Aritana e Melobô estão unidos contra o inimigo externo, os fazendeiros que sempre ensaiam invadir a reserva. Política Há menos de meio século, as tribos que hoje habitam o Xingu guerreavam o tempo todo. Kaiabi não podia ver kayapó. Juruna que cruzasse com suyá morria. Atualmente, vivem o que chamam de "longa trégua". A luta agora é pela preservação ambiental. | O cacique Aritana é um autêntico embaixador. Carismático, muito conhecido fora do Xingu, ele domina com fluência nove idiomas indígenas. É dele a estratégia da geopolítica do casamento, a pacificação pelo matrimônio. Está dando certo. Casado com duas irmãs, Timai e Sakastro, Aritana é pai de nove filhos. Sua política consiste em solidificar a paz no Alto Xingu por intermédio de alianças matrimoniais com outras tribos, bordando uma verdadeira colcha de interesses e conveniências. Aritana parece habilitado a isso, já que é capaz de manter a paz em sua casa, onde vive com duas mulheres – luxo que só os caciques ou os guerreiros que podem sustentar usufruem. "A grande vantagem, no meu caso, é só ter uma sogra", confessa com uma gostosa gargalhada. Alto, forte, o cacique dos yawalapitis mantém os braços cruzados e o olhar enviesado enquanto conversa. Ele conta que os suyás, os amantes da guerra, os waurás, os "do contra", e os implicantes jurunas eram grandes inimigos de sua gente à época de seu avô: "Vinham, lutavam e roubavam até nossas mulheres". Ele próprio é personagem de um desses "raptos das Sabinas". Seu pai, Parú, reconhecido pajé especialista em ervas, tornara-se amigo de Orlando Villas-Boas ainda nos tempos da pacificação dos índios do Brasil central, nos idos dos anos 50. Com a cumplicidade do sertanista, Parú seqüestrou uma mulher de outra tribo, com a qual se casou, e daí nasceu Aritana. Pairando acima desses caciques, a imagem de Mairawê Kaiabi, presidente eleito da Associação das Terras Indígenas do Xingu, Atix, uma espécie de ONU dos índios. Consensual e politicamente correto, o cacique é um personagem cujas funções são pouco conhecidas fora do Xingu. Ele é uma espécie de capataz, o sujeito que lembra aos demais das tarefas que precisam ser executadas. É incontrastável. Para amaciar o poder existe o pajé, o único índio da hierarquia que está acima do bem e do mal. É ele o responsável pelo bem-estar de seu povo. Quando os médicos brancos chegaram ao Xingu para tratar dos índios, a primeira coisa que os pajés providenciaram foi a delimitação das áreas de atuação dos médicos e dos pajés. Exemplo prático dessa divisão é o parto. O pajé tira a criança da barriga da mãe, dá umas boas baforadas para espantar os maus espíritos e passa o recém-nascido para os médicos, que se ocupam do cordão umbilical, da vacina antitetânica e dos antibióticos. Ocorrem situações difíceis nessa divisão de atribuições. Às vezes, algum doente carece de cuidados médicos urgentes para não morrer, mas os pajés teimam em continuar com suas ervas e baforadas. Eventualmente o paciente morre. Os médicos lamentam, mas não se intrometem. A única aldeia em que o poder do pajé se encontra virtualmente ofuscado é a do Sobradinho. Ali, os kaiabis fizeram um pacto original com a Assembléia de Deus. Os religiosos pediram permissão ao cacique Matari para converter sua tribo. O cacique pediu tempo. Três dias depois, veio a contraproposta: ele e seu filho Aturi deveriam ser nomeados, de imediato, pastores da Assembléia de Deus. Os protestantes toparam. Hoje, é a única tribo em que o nu foi abolido, pelo menos em teoria. "Na hora do sufoco, todos suspiram por uma pajelança", confidencia, com rancor mal camuflado, um pajé de outra tribo kaiabi. Os kalapalos da aldeia tanguro também caíram na tentação dos padres salesianos. Em troca da permissão para catequeses, alguns índios vão, aos cuidados dos padres, estudar em São Carlos, interior paulista. Tem sido assim a vida nesta nesga de terra privilegiada do Brasil. A natureza agradece. As gerações vindouras de índios e brancos também Font= Revista veja Editora abril
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