segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Os guardiães do verde

Os guardiães do verde

As tribos do Xingu em paz, mas alertas

para a guerra contra os destruidores da natureza


Silvio Ferraz, do Xingu


 



Fotos: Paulo Jares

Posto Diauarum: porta de entrada das tribos
para o
Xingu. Festa da Taquara: diariamente, durante
três
meses, para afastar tristeza

Defendido com bordunas, flechas e muita
lábia pelos 3.600 índios de catorze etnias que habitam a região, o Parque
Nacional do Xingu sobrevive milagrosamente sem poluição com sua fauna
e flora intocadas. As fotos de satélite feitas do centro do país, onde
está encravada a reserva indígena, são desoladoras. Pecuaristas e madeireiras
transformaram a região em uma gigantesca mesa de bilhar. O negócio deles
é tocado sem o menor respeito pela natureza, de modo que a floresta é
queimada em busca de árvores de valor comercial ou simplesmente derrubada
para se transformar em pasto. Sobrou uma ilha verde cercada de desmazelo
ecológico, a terra dos índios do Xingu. Pergunte-se a dez habitantes do
planeta Terra quem são os civilizados nessa região e a resposta nesses
tempos ecologicamente corretos será: os índios.





Educação

Os
índios preparam-se para gerir o próprio território. Aprendem português,
geografia, ciências, cálculo porcentual e a fazer tabelas. Os cursos
usam até vídeos.


Os mais velhos são chamados
para narrar as tradições de seus povos. Ser professor é um cargo
cobiçado nas tribos.


Localizado no norte de Mato Grosso, divisa com o Pará, espalhado por
27.000 quilômetros quadrados, quase o tamanho
da Bélgica, o Parque Nacional do Xingu foi uma iniciativa de sertanistas
liderados pelos irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Boas. Materializada
em 1961 pelo presidente Jânio Quadros, para preservar a cultura, os hábitos
e a religião desses povos, ninguém dava nada pelo destino da reserva.
Instalada em terras pertencentes à União, acabou vingando. Sem seringais
nativos, livrou-se da cobiça dos exploradores. Os Villas-Boas buscaram
uma política de preservação isolada. Ou seja, manter os índios o mais
distante possível da cultura dos brancos. Assim conseguiram evitar os
choques que teriam estraçalhado o lado mais fraco. Os contatos eram tão
controlados que os indígenas eram obrigados a pedir licença quando iam
viajar para os vilarejos mais próximos do Parque do Xingu. "Queríamos
mantê-los longe da cachaça e dos bordéis", conta Orlando Villas-Boas,
hoje acompanhando a vida no Xingu de sua casa no Alto da Lapa, em São
Paulo, visitada periodicamente por seus amados índios.







Fotos: Paulo Jares


Jovens da tribo
Kamaiurá passam urucum contra os
mosquitos. No Xingu a
expectativa de vida subiu para 50 anos

Saúde


A população recebe cuidados médicos da
Escola Paulista de Medicina. Já houve um caso de Aids. Os índios
escovam os dentes
três vezes
ao dia,
num programa da Colgate-Palmolive
que distribui 20 000 escovas e tubos de pasta
de
dentes por ano.

 


"Nossa maior conquista foi a pacificação", garante Orlando.
De fato, não foi fácil quebrar vocações guerreiras como a dos índios suyás.
Seu esporte preferido era a guerra. Os jovens, desde cedo, recebiam cultura
militar dos guerreiros e, dos mais velhos, histórias de grandes feitos.
Quando a paz monótona se prolongava, os suyás tratavam de quebrá-la com
expedições punitivas aos territórios dos jurunas ou dos kamaiurás ou trumais.
Hoje, netos de avós que se odiavam bebem na mesma cuia sem temer a morte
por envenenamento. Além da pacificação das tribos que se entredevoravam
há menos de meio século, os brancos tomaram outra providência vital: a
aplicação regular de vacinas permitiu o crescimento populacional. Atualmente,
com uma taxa de natalidade de 3,6%, os índios se multiplicam mais velozmente
que a média dos demais brasileiros. A expectativa de vida entre eles aumenta
num ritmo mais animador que a dos demais grupos populacionais brasileiros.
Chegou a 50 anos no ano passado e segue crescendo. A média brasileira,
de 68 anos, continua subindo, porém mais lentamente que a dos índios do
Xingu. Portanto, não está distante o dia em que, mantida a atual situação,
os índios do Xingu estarão vivendo mais e, sem dúvida, melhor que seus
vizinhos do centro geodésico do país.


Graças à sabedoria de algumas lideranças indígenas e brancas, o Xingu
é hoje um raro arranjo harmônico entre culturas díspares. Foram os brancos
que escolheram a área da reserva e que pacientemente transportaram em
aviões militares um a um todos os índios, vindos de vários pontos da Amazônia,
para seu novo lar. Com isso tiraram os indígenas da rota certa do extermínio.
Obviamente, não se faz uma transposição dessas sem um preço. Os brancos
introduziram o sal na dieta e, com ele, a hipertensão arterial. Enfermidades
cardíacas e diabetes, outros males que passaram a ser conhecidos dos índios.
"Mais recentemente apareceu até um caso de Aids, o problema é raro,
mas já preocupa", diz o médico Douglas Rodrigues, coordenador da
equipe da Universidade Federal de São Paulo que, desde 1965, cuida das
doenças mais sérias das tribos entre elas
as mais resistentes, gripe e tuberculose. São quatro viagens anuais à
região, o que dá aos índios um padrão de assistência de muito boa qualidade.


A nova geração xinguana aprende a preservar a natureza, mantendo a identidade.
Inevitavelmente, convive com sandálias havaianas, pilhas, lanternas, calções
de brim, camisetas do Flamengo e do Palmeiras e até mesmo clones de tênis
usados na orla carioca ou nas ruas de São Paulo. Barcos de alumínio impulsionados
por motores de popa de 25 cavalos, rádios, poucos aparelhos de televisão
com antenas parabólicas movidas a bateria solar quebram o silêncio e completam
as concessões ao modernismo.










Fotos: Paulo Jares



O cacique Kuiussi, dos suyás, ladeado pelos pajés, reúne suas
forças: seus guerreiros, as duas mulheres e as crianças. Índias yawalapitis
ralam a mandioca-brava, base da alimentação sadia.
Os guerreiros não vão mais à guerra, e a luta "huca-huca"
virou esporte que só perde para o futebol


 


A viagem, descendo o rio, um mergulho no paraíso. As praias surgem a
partir de maio e vão até setembro, quando as chuvas recomeçam e o rio
sobe e invade as matas. As areias finíssimas, alvas e com pequenas dunas
onde pousam garças e uma infinidade de pássaros silvestres emolduram a
mata fechada. A duas horas do Posto Diauarum, aparece o Suiá-Miçu, afluente
do majestoso Rio Xingu. Mais uma hora, despontam as primeiras malocas
da aldeia rikô, da tribo suyá. O cacique é Kuiussi pintado com urucum,
para espantar os enxames de mosquitos. Farta cabeleira negra penteada
até os ombros, a narina esquerda sem um pedaço, sem que isso o faça mais
amedrontador. Kuiussi chegou ao Xingu com 2 anos. Sua tribo desaparecia
aceleradamente. Cláudio Villas-Boas livrou os suyás da extinção. Hoje
eles são quase 300 orgulhosos sobreviventes. Até a língua suyá, que morria,
revigorou-se.






Economia


Os kaiabis são mestres em panelas de barro
e na cestaria. Os bancos dos kamaiurás, imitando animais, são cobiçados.
Todos são agricultores. Mandioca, banana, amendoim e milho são culturas
de base. Entre si, vivem de trocas. Começaram a exportar para São
Paulo e Rio.



O coração do país é um lugar feliz. Ali, festa e trabalho se confundem.
São 3 horas da manhã, e o silêncio da noite na floresta é cortado, de
repente, pela batida surda dos tambores. Começa a festa do Kahrankasaka,
a "festa do tracajá feio", a pequena tartaruga que povoa os
rios da região. Só para homens. Chocalhos nas pernas e nos tornozelos,
cantam e dançam em círculo até o sol raiar, em homenagem à chuva que faz
a água, à água que faz o rio, ao rio que alimenta os peixes, aos peixes
que alimentam os homens. O sol, a luz, o dia e a noite, as árvores, as
onças e as pacas, antas e abelhas são homenageados. Até mesmo o rato.
Os suyás acreditam que, por ter descoberto o milho, o rato merece graças.
As mulheres também têm sua festa particular: a principal é a Yamurekumã,
com data móvel. Reza a lenda que, cansadas de só comer o jacaré caçado
pelos companheiros, elas os punem com uma greve sexual. Na noite em que
o mito é relembrado, as índias surram os homens e nem o cacique e o pajé
livram-se de boas bordoadas. É para feminista nenhuma botar defeito.





Fotos: Helvio Romero


Os yawalapitis amarram as pernas e os
braços
para realçar a musculatura. Altos, sadios,
trabalham na
agricultura e abastecem a casa com peixe e caça


Enquanto a civilização ainda engatinha com o v-chip, a solução eletrônica
que vai permitir aos pais censurar os programas de televisão inadequados
para seus filhos, os caciques do Xingu já resolveram o problema. Foram
radicais. Eles perceberam que as brincadeiras das crianças tornavam-se
violentas depois que assistiam a programas de televisão e simplesmente
baixaram a ordem: desligar os aparelhos. Todo mundo obedece.


A paz vale ouro quando se é obrigado a conviver num espaço territorial
limitado. A transformação dos índios ykpengs de selvagens ranzinzas e
agressivos a um povo que valoriza a convivência pacífica é emblemática
no Xingu. O cacique ykpeng, também pajé, uma espécie de sacerdote e curandeiro,
é Melobô, um "estadista ateniense", como é descrito pelo antropólogo
Darcy Secchi. Apesar da fisionomia dura, Melobô ama a política e a negociação.
É a voz de oposição a outra força política, o prestigioso Aritana, cacique
dos yawalapitis, no Alto Xingu. No passado acabariam medindo forças num
combate sanguinário. Hoje, Aritana e Melobô estão unidos contra o inimigo
externo, os fazendeiros que sempre ensaiam invadir a reserva.





Política


Há menos de meio século, as tribos que
hoje habitam o Xingu guerreavam o tempo todo. Kaiabi não podia ver
kayapó. Juruna que cruzasse com suyá morria. Atualmente, vivem o
que chamam
de "longa trégua".
A luta agora é pela preservação ambiental.


O cacique Aritana é um autêntico embaixador. Carismático, muito conhecido
fora do Xingu, ele domina com fluência nove idiomas indígenas. É dele
a estratégia da geopolítica do casamento, a pacificação pelo matrimônio.
Está dando certo. Casado com duas irmãs, Timai e Sakastro, Aritana é pai
de nove filhos. Sua política consiste em solidificar a paz no Alto Xingu
por intermédio de alianças matrimoniais com outras tribos, bordando uma
verdadeira colcha de interesses e conveniências. Aritana parece habilitado
a isso, já que é capaz de manter a paz em sua casa, onde vive com duas
mulheres luxo que só os caciques ou os
guerreiros que podem sustentar usufruem. "A grande vantagem, no meu
caso, é só ter uma sogra", confessa com uma gostosa gargalhada. Alto,
forte, o cacique dos yawalapitis mantém os braços cruzados e o olhar enviesado
enquanto conversa. Ele conta que os suyás, os amantes da guerra, os waurás,
os "do contra", e os implicantes jurunas eram grandes inimigos
de sua gente à época de seu avô: "Vinham, lutavam e roubavam até
nossas mulheres". Ele próprio é personagem de um desses "raptos
das Sabinas". Seu pai, Parú, reconhecido pajé especialista em ervas,
tornara-se amigo de Orlando Villas-Boas ainda nos tempos da pacificação
dos índios do Brasil central, nos idos dos anos 50. Com a cumplicidade
do sertanista, Parú seqüestrou uma mulher de outra tribo, com a qual se
casou, e daí nasceu Aritana. Pairando acima desses caciques, a imagem
de Mairawê Kaiabi, presidente eleito da Associação das Terras Indígenas
do Xingu, Atix, uma espécie de ONU dos índios.


Consensual e politicamente correto, o cacique é um personagem cujas funções
são pouco conhecidas fora do Xingu. Ele é uma espécie de capataz, o sujeito
que lembra aos demais das tarefas que precisam ser executadas. É incontrastável.
Para amaciar o poder existe o pajé, o único índio da hierarquia que está
acima do bem e do mal. É ele o responsável pelo bem-estar de seu povo.
Quando os médicos brancos chegaram ao Xingu para tratar dos índios, a
primeira coisa que os pajés providenciaram foi a delimitação das áreas
de atuação dos médicos e dos pajés. Exemplo prático dessa divisão é o
parto. O pajé tira a criança da barriga da mãe, dá umas boas baforadas
para espantar os maus espíritos e passa o recém-nascido para os médicos,
que se ocupam do cordão umbilical, da vacina antitetânica e dos antibióticos.
Ocorrem situações difíceis nessa divisão de atribuições. Às vezes, algum
doente carece de cuidados médicos urgentes para não morrer, mas os pajés
teimam em continuar com suas ervas e baforadas. Eventualmente o paciente
morre. Os médicos lamentam, mas não se intrometem.


A única aldeia em que o poder do pajé se encontra virtualmente ofuscado
é a do Sobradinho. Ali, os kaiabis fizeram um pacto original com a Assembléia
de Deus. Os religiosos pediram permissão ao cacique Matari para converter
sua tribo. O cacique pediu tempo. Três dias depois, veio a contraproposta:
ele e seu filho Aturi deveriam ser nomeados, de imediato, pastores da
Assembléia de Deus. Os protestantes toparam. Hoje, é a única tribo em
que o nu foi abolido, pelo menos em teoria. "Na hora do sufoco, todos
suspiram por uma pajelança", confidencia, com rancor mal camuflado,
um pajé de outra tribo kaiabi. Os kalapalos da aldeia tanguro também caíram
na tentação dos padres salesianos. Em troca da permissão para catequeses,
alguns índios vão, aos cuidados dos padres, estudar em São Carlos, interior
paulista. Tem sido assim a vida nesta nesga de terra privilegiada do Brasil.
A natureza agradece. As gerações vindouras de índios e brancos também
Font= Revista veja Editora abril

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