segunda-feira, 29 de março de 2010

Idios do Acre da etnia ASHANINKA

ASHANINKA

Vida e Cultura Ashaninka do Alto Juruá na Amazônia
Os Ashaninka têm uma longa história de luta, repelindo os invasores desde a época do Império Incaico até a economia extrativista da borracha do século XIX e, particularmente entre os habitantes do lado brasileiro da fronteira, combatendo a exploração madeireira desde 1980 até hoje. Povo orgulhoso de sua cultura, movido por um sentimento agudo de liberdade, prontos a morrer para defender seu território, os Ashaninka não são simples objetos da história ocidental. É admirável sua capacidade de conciliar costumes e valores tradicionais com idéias e práticas do mundo dos brancos, tais como aquelas ligadas à sustentabilidade socioambiental.
Localização e População

Habitação ashaninka
no alto Juruá.
Foto: Arno Vogel, 1978
A área de ocupação dos Ashaninka estende-se por um vasto território, desde a região do Alto Juruá e da margem direita do rio Envira, em terras brasileiras, até as vertentes da cordilheira andina no Peru, ocupando parte das bacias dos rios Urubamba, Ene, Tambo, Alto Perene, Pachitea, Pichis, Alto Ucayali, e as regiões de Montaña e do Gran Pajonal.
A grande maioria dos Ashaninka vive no Peru. Os grupos situados hoje em território brasileiro são também provenientes do Peru, tendo iniciado a maior parte de suas migrações para o Brasil pressionados pelos caucheiros peruanos no final do século XIX. Aqui os Ashaninka estão em cinco Terras Indígenas distintas e descontínuas, todas situadas na região do Alto Juruá.
Nome e Língua
Os Ashaninka pertencem a família lingüística Aruak (ou Arawak). Eles são o principal componente do conjunto dos Aruak sub-andinos, também composto pelos Matsiguenga, Nomatsiguenga e Yanesha (ou Amuesha). Apesar de existirem diferenças dialectais, os Ashaninka apresentam uma grande homogeneidade cultural e lingüística.
Ao longo da história, os Ashaninka foram identificados sob vários nomes: Ande, Anti, Chuncho, Pilcozone, Tamba, Campari... Todavia, eles são mais conhecidos pelo termo “Campa” ou “Kampa”. Esse nome foi freqüentemente utilizado por antropólogos e missionários para designar os Ashaninka de maneira exclusiva ou os Aruak sub-andinos de forma genérica, com exceção dos Piro e dos Amuesha.
Ashenĩka é a autodenominação do povo e pode ser traduzida como “meus parentes”, “minha gente”, “meu povo”. O termo também designa a categoria de espíritos bons que habitam “no alto” (henoki).
Cosmologia e Xamanismo
Entre os Ashaninka, encontramos as características que definem os sistemas cosmológicos xamânicos presentes nas terras baixas da Amazônia: universo dividido em vários níveis; a existência de um mundo invisível por trás do mundo visível, o papel do xamã como mediador entre esses mundos etc. Talvez a particularidade ashaninka resida na sua concepção extremamente dualista do universo, definindo claramente as fronteiras entre o Bem e o Mal.
Segundo o antropólogo Gerald Weiss, o universo indígena, organizado verticalmente, compreende um número indeterminado de níveis superpostos. Assim, de baixo para cima, encontramos, sucessivamente: Šarinkavéni (o “Inferno”), Kivínti (o primeiro nível subterrâneo), Kamavéni (o mundo terrestre), Menkóri (o mundo das nuvens) e outras camadas que cobrem a terra e compõem o céu (1969: 81-90). O conjunto dos níveis celestes é denominado henóki, mas esse termo também é utilizado como sinônimo de céu, cuja denominação adequada é Inkite.
De acordo com Weiss, mesmo esses níveis sendo inter-relacionados, os moradores de cada um deles experimentam seu mundo de uma maneira sólida. Assim, por exemplo, se tomamos como referência a nossa Terra (Kamavéni), residência dos homens mortais, o céu visível a partir dela constitui apenas o chão do nível imediatamente superior (Menkóri) cuja maior parte permanece fora da nossa percepção visual. Embaixo de Kamavéni, existem dois níveis: Kivínki (-1), residência de “bons espíritos”, e Šarinkavéni (-2) que, segundo o autor, pode ser qualificado como o “Inferno dos Campa”. Weiss salienta, no entanto, que o nível -1 é mencionado por poucos Ashaninka, muitos considerando que, abaixo da terra, só existe Šarinkavéni: o mundo dos demônios.
A cosmologia Ashaninka complica-se quando Weiss identifica os habitantes das diferentes camadas do universo, procurando explicar o papel desempenhado por cada um deles, suas diversas manifestações e suas relações com os Ashaninka. No céu, ou mais especificamente, em cima (henóki), vivem os bons espíritos. Essa categoria é chamada de amacénka e também ašanínka, ou seja, é tomada como extensão da própria autodenominação do povo.
Esses espíritos são hierarquizados conforme o poder que lhes é atribuído e sua importância na cosmologia. Os mais poderosos são denominados Tasórenci e são considerados como verdadeiros deuses. Os Tasórenci têm o poder de transformar tudo através do sopro e formam o panteão ashaninka que criou e governa o universo. No topo dessa hierarquia está Pává (Pawa), o mais poderoso dos Tasórenci, pai de todas as criaturas do universo. Geralmente invisíveis aos olhos humanos, alguns Tasórenci podem, no entanto, aparecer na Terra revestindo-se de forma humana.
Os espíritos do Mal e os demônios, chamados genericamente Kamári, habitam o nível mais inferior, onde vivem sob a autoridade suprema de Koriošpíri. Mas esses espíritos maléficos não residem apenas em Šarinkavéni. Embora essa primeira camada da hierarquia apresente a maior concentração desses seres e abrigue os mais poderosos entre eles, os espíritos nefastos também se encontram, em vários lugares, no mundo habitado pelos homens. Na “nossa” Terra, o principal demônio é Mankóite, que tem sua moradia nas ribanceiras freqüentemente encontradas ao longo dos rios em território ashaninka. Ele se caracteriza por uma forma humana, mas geralmente permanece invisível. Um encontro com ele anuncia a morte. É interessante notar que, segundo Weiss, o Mankóite vive de maneira semelhante ao branco: suas casas têm os mesmos objetos, possuem mercadorias etc.
Assim, a espiritualidade ashaninka apresenta um caráter extremamente dualista. No Cosmos hierarquizado por Pává, os espíritos são, geralmente, bons (amacénka ou ašanínka) ou maus (kamári). Tanto uns como outros manifestam sua presença de diferentes maneiras na Terra habitada pelos humanos. O šeripiari (xamã) atua como mediador entre os homens e essas diferentes camadas do cosmos. Com o auxílio do tabaco, da coca e do kamárampi (ayahuasca), ele procura comunicar-se com os espíritos bons e combater as forças diabólicas, mas também pode dispor seu poder a serviço do Mal (feitiçaria). Dessa forma, o plano em que vivem os homens não é habitado exclusivamente por seres humanos, animais e plantas. Ele apresenta-se como um mundo em equilíbrio frágil, onde os homens vivem constantemente assediados pelo confronto entre o Bem e o Mal. No rio Amônia
Os Ashaninka do rio Amônia também relatam uma visão do mundo construída a partir de uma estrutura do universo verticalmente hierarquizada e composta de camadas superpostas. O nível subterrâneo é associado à morte e aos espíritos do mal: kamari. Os índios pouco falam sobre esse mundo onde moram pessoas estranhas, algumas com um modo de vida semelhante ao do branco (casas, carros...) e que conseguem respirar na água. Os Ashaninka afirmaram que nenhum deles vive lá e que não gostam de pensar nesse lugar perigoso porque poderiam acordar os espíritos maléficos e chamá-los para o nosso mundo. Todos eles afirmam, no entanto, que essa camada existe e situa-se “embaixo” (isawiki) da nossa Terra.
Embora esse mundo esteja associado à morte e tenha sido qualificado por alguns como o “Inferno”, ele não é sempre apresentado como tal. Segundo o relato de Shomõtse, atualmente o Ashaninka mais idoso da aldeia Apiwtxa, o “Inferno” não se situaria nesse nível subterrâneo, mas estaria localizado no céu ou, mais exatamente, “em cima” (henoki), e não “embaixo” (isawiki). Lá existe um “grande buraco com água fervendo numa grande panela”. O dono desse lugar é Totõtsi, cuja principal tarefa é cozinhar os Ashaninka pecadores. A presença do “Inferno” em cima também se encontra em outros relatos, enquanto alguns informantes acreditam que esse lugar esteja situado debaixo da Terra.
Como no caso exposto por Weiss, os Ashaninka do rio Amônia apresentam o céu como composto de várias camadas. No topo, em inkite, encontra-se Pawa, o Deus todo poderoso. Na camada imediatamente inferior, estão os Tasorentsi, que são vistos com características divinas: “eles são como um Deus, pegam qualquer coisa, sopram e transformam em outra coisa”. Num nível abaixo deles, sempre em henoki, encontram-se outros espíritos bons que, como os Tasorentsi, são os “verdadeiros filhos de Deus”. Segundo alguns informantes, essa camada do céu é chamada Pitsitsiroyki. É onde Pawa seleciona entre os Ashaninka aqueles que reconhece como filhos. Segundo os Ashaninka do rio Amônia, esses “espíritos bons” que vivem em henoki podem todos ser considerados como itome Pawa (filhos de Pawa) e são chamados amatxenka ou asheninka.
Para os Ashaninka do rio Amônia, Pawa é apresentado como o Deus criador de todo o universo. Às vezes, os Ashaninka se referem a ele como Paapa (pai). Direta ou indiretamente apoiado pelos seus filhos, ele criou a Terra, a floresta, os rios, os animais, os homens, o céu, as estrelas, o vento, a chuva... Na mitologia nativa, muitas dessas criações são, na realidade, transformações de pessoas ashaninka, filhos de Pawa, em outra coisa e foram realizadas através do sopro. Assim, nos tempos da criação do mundo, os animais, as plantas, os astros ou certos lugares ou fenômenos tinham uma aparência humana e eram, de uma maneira geral, filhos de Pawa. Em função do comportamento desses primeiros Ashaninka na Terra, o Deus e/ou os Tasorentsi transformaram-nos em outra coisa, ruim ou boa. Sol e Lua
Na mitologia ashaninka, o gênero de Sol e Lua são opostos ao português, sendo o primeiro feminino e o segundo masculino. Segundo Weiss, Pawa teria nascido de uma relação sexual de Lua com uma mulher ashaninka que morreu queimada ao dar à luz a Sol. Desse modo, Lua é considerado o pai de Pawa. Antes de subirem ao céu, durante muito tempo Sol e Lua viveram na terra.
Lua ofereceu a mandioca (kaniri) aos Ashaninka que, até aquele momento, só se alimentavam de térmitas. Todavia, apesar de ser o pai de Sol e também considerado como Deus, Lua ocupa um status inferior a Sol em razão de suas atividades que o afastam da vida e o aproximam da morte. Ser canibal, Lua alimenta-se dos mortos e o destino dos Ashaninka é serem devorados por ele.
Essa relação de filiação entre a Lua e o Sol parece um pouco problemática entre os Ashaninka do rio Amônia. Kashiri não é sempre reconhecido como pai de Pawa, na medida em que muitos informantes afirmam, categoricamente, que este sempre existiu e criou tudo, inclusive Lua. Este é visto como um ser ambíguo, ao mesmo tempo considerado como um Deus fornecedor da mandioca (kaniri), mas também associado a um ser canibal que briga periodicamente com Sol (eclipses) e é associado ao mundo dos mortos.
Segundo os Ashaninka do rio Amônia, após a vida na Terra, os mortos (kamikari) vão, num primeiro momento, para o mundo “embaixo” (isawiki), onde permanecem por um tempo. Nas fases de lua nova, Kashiri ingere-os e leva-os para Pitsitsiroyki, onde os entrega a uma estrela. Esta é encarregada de lavá-los, perfumá-los e guardá-los até a visita de Pawa que, periodicamente, vem escolher entre os mortos os Ashaninka que ele reconhece como filhos legítimos e deseja guardar perto de si. Os brancos
Essa hierarquização do Cosmos e a dicotomia entre o Bem e o Mal são fundamentais para entender o lugar atribuído pelos Ashaninka aos “outros” e, principalmente, aos brancos. Toda a organização do Cosmos nativo está baseada nesse princípio estrutural composto por dois elementos ao mesmo tempo opostos e complementares. Assim, enquanto os Ashaninka são idealmente associados ao Bem, o branco mantém laços estreitos com os espíritos maléficos e as forças do mal. A visão do branco (wirakotxa) aparece com destaque na mitologia nativa. O primeiro wirakotxa de que os Ashaninka do rio Amônia afirmam ter conhecimento é o espanhol que surge de um lago, em decorrência de um ato de desobediência do Inka ao seu pai Pawa, e vem perturbar a ordem do universo.
“Antigamente, o wirakotxa morava dentro de um lago. Aí, Inka foi pescar com outro Ashaninka. Era de madrugada. Aí, escutou galinha no fundo e disse: “Rapaz, vamos pegar isso”. “Não precisa não, fica assim mesmo, não vamos mexer não”. No outro dia, a mesma coisa. De novo, ouviu galinha, ouviu cachorro latir no fundo (...). Aí, Inka foi ver Pawa. “Não mexe não, meu filho”. Mas Inka não escutou e foi mariscar [pescar]. Escutava galinha assim bem pertinho, escutava cachorro. “Vou pegar galinha”. Aí, botou anzol com banana, pedaço assim (...) Aí, saiu galinha. Aí, botou de novo, saiu cachorro. Aí, escutou de novo barulho. Pegou banana e saiu Branco. Aí, wirakotxa subiu na Terra. Aí, Pawa ficou brabo e perguntou: “Por que tu foi buscar wirakotxa?”. “Papai, eu fui pegar galinha e wirakotxa saiu”. “Eu não quero esse branco pra cá junto com nós. Eu deixei ele pra lá mas tu gostou dele, agora pode ficar pra tu! Agora, eu vou embora e tu vai ficar com wirakotxa e trabalhar pra ele”. (Alípio, Ashaninka morador do rio Amônia)
O fato de Inka ter pescado a galinha e o cachorro antes do branco é considerado sinal de advertência de Pawa ao seu filho, para que ele interrompesse sua atividade infeliz. Esses animais, trazidos pelo branco, eram desconhecidos dos Ashaninka, que têm um acervo muito variado de mitos para explicar o surgimento da maioria dos animais. Estes eram, inicialmente, Ashaninka que perderam sua aparência humana e foram transformados em animais por Pawa ou pelos Tasorentsi. Todavia, a galinha (txaapa) e o cachorro (otsitsi) nunca foram Ashaninka. Eles surgiram do lago onde eram os fiéis companheiros do branco. Em alguns casos, a comparação com o cachorro foi usada por informantes para qualificar genericamente o branco e/ou seu comportamento: “feio como um cão”, “sovina como cachorro”, “fedorento como cachorro”...
O surgimento do wirakotxa na Terra é portanto o resultado da desobediência do Inka a Pawa, que havia inicialmente separado os Ashaninka dos brancos. Na mitologia indígena, a irresponsabilidade do Inka é mais um exemplo de uma longa lista de erros cometidos pelos filhos de Pawa nos tempos originais. O conjunto desses erros explica a situação atual dos Ashaninka e as imperfeições do seu mundo.
A importância desse evento é reforçada por muitos que consideram que foi em decorrência direta desse ato que o Deus Criador subiu ao céu. Cansado das sucessivas desobediências de seus filhos, Pawa teria decidido deixá-los sozinhos na Terra e morar no céu, onde permanece até hoje, usufruíndo de um mundo perfeito. Outros dizem que Pawa ainda ficou durante um tempo na terra, onde tentou construir um muro para separar os Ashaninka dos brancos.
http://img.socioambiental.org/d/209622-1/ashaninka_2.jpg
De uma maneira geral, a visão que os Ashaninka do rio Amônia constroem do branco pode assemelhar-se à categoria genérica dos espíritos malévolos, kamari. Como eles, o branco é associado à morte e às doenças (matsiarentsi). Os índios acreditam que as doenças são o resultado desses seres nefastos ou da atividade de um xamã maldoso através da feitiçaria. Frente às perigosas e desconhecidas doenças dos brancos (mãtsiari wirakotxa), a sabedoria do sheripiari é ineficaz.
Cultura Material
Os Ashaninka contam que sempre tiveram canoas (pitotsi), casas (pãkotsi) e roçados (owãtsi) com várias qualidades de mandioca (kaniri). Antigamente, as casas eram diferentes, tinham paredes e ficavam diretamente assentadas no chão. Hoje, são construídas sobre pilotis. Embora os brancos regionais também morem em casas elevadas, as dos Ashaninka, geralmente, não têm paredes ou divisões e são cobertas com palha, enquanto os wirakotxa ribeirinhos usam alumínio.
Diferentemente da maioria dos outros grupos indígenas das terras baixas sul-americanas, os Ashaninka sempre usaram roupas. Veste tradicional ashaninka, a kushma constitui um elemento importante na diferenciação étnica. Cabe notar que a palavra “kushma” é de origem quéchua e, embora ela seja também usada pelos índios, os Ashaninka têm o termo “kitharentsi”, que é utilizado para se referir tanto à vestimenta como ao tear e ao tecido.
Foram as filhas de Pawa que ensinaram as mulheres ashaninka a tecer e a fazer a vestimenta. Para os homens, o decote tem uma forma de “V”, enquanto o das mulheres é em “U”. A roupa masculina apresenta listas verticais coloridas, que são obtidas após o tingimento da linha de algodão. Na kushma feminina, as linhas são horizontais. Os motivos realizados a partir dos corantes vegetais também são diferentes. Na túnica dos homens, eles são tecidos e representam detalhes corporais de animais: cara de arara, rabo de bico-de-jaca, características de larvas, pássaros, peixes... Na kushma feminina, os desenhos são pintados e representam pássaros, larvas, peixes e, sobretudo, onças e cobras... Depois de um certo tempo de uso, ambas as vestimentas são tingidas com casca de mogno e lama, o que lhes dá uma cor marrom/preta. A diferença mais significativa entre as duas kushma é que a túnica do homem ainda é realizada tradicionalmente com o algodão (ãpe) tecido no tear, enquanto as mulheres usam tecido industrializado.
O chapéu (amatherentsi) é feito com uma palha de palmeira de cocão (kõtaki) e enfeitado com penas de arara. Se seu uso na Terra Indígena é restrito, mas ao prepararem sua bagagem para as viagens fora da aldeia, as lideranças, junto com a kushma, geralmente, não esquecem o chapéu.
O txoshiki é um tipo de colar confeccionado com várias espécies de sementes nativas. Usados a tiracolo em diagonal, com muitas voltas, eles são, geralmente, enfeitados com adornos (thatane) que caem nas costas. Esses adornos são feitos com sementes, cascas de castanhas ou penas (arara, papagaio, tucano, mutum...). Entre os vários modelos de colares, o kenpiro reproduz os desenhos e as cores da serpente e é considerado o txoshiki original e o mais tradicional pelos Ashaninka.
Entre os instrumentos musicais, os Ashaninka destacam os tambores (tãpo) e a flauta de tipo sõkari. O tambor, de tamanho variável, é feito de madeira de cedro. O tronco é escavado e recoberto dos dois lados com couro de porquinho, queixada ou de várias espécies de macaco (preto, prego, barrigudo...), mais raramente, de arraia. O couro é amarrado à madeira com uma corda de fibra natural (imbaúba). A batida é feita com baquetas confeccionadas em madeira ou com o osso de um macaco, geralmente o fêmur. O sõkari é uma flauta de pã composta por cinco canos de bambu, amarrados com uma corda feita a partir da linha de algodão. O bambu utilizado é de uma espécie que os índios chamam de “shawope” e que vão buscar no Alto Juruá peruano. O sõkari é geralmente tocado pelos homens mais velhos e tem uma simbólica importante. Os informantes contam que ele é usado para homenagear Pawa e se distingue das outras flautas, como o showiretsi ou totama que são tocadas no piyarentsi, simplesmente para dançar.
Rituais

Pintura facial em mulher ashaninka no rio Amônea.
Foto: Mauro Almeida, 1983
Entre os Ashaninka, tanto a bebida feita de ayuaska como o ritual são chamados kamarãpi (vômito, vomitar). A cerimônia é sempre realizada à noite e pode se prolongar até de madrugada. Um Ashaninka pode consumir o chá sozinho, em família ou convidar um grupo de amigos, mas, geralmente, as reuniões são constituídas de grupos pequenos (cinco ou seis pessoas). O kamarãpi se caracteriza pelo respeito e silêncio e contrasta fortemente com a animação festiva do ritual piyarentsi. A comunicação entre os participantes é mínima e apenas os cantos, inspirados pela bebida, vêm romper o silêncio da noite. Contrariamente ao piyarentsi, esses cantos sagrados do kamarãpi não são acompanhados por nenhum instrumento musical.
Eles permitem aos Ashaninka comunicarem-se com os espíritos, agradecerem e homenagearem Pawa.
O kamarãpi é um legado de Pawa, que deixou a bebida para que os Ashaninka adquirissem o conhecimento e aprendessem como se deve viver na Terra. As respostas a todas as perguntas dos homens estão acessíveis com o aprendizado xamânico, que é realizado através do consumo regular e repetitivo da bebida, durante anos. A formação do xamã (sheripiari), no entanto, nunca pode ser considerada como concluída. Se a experiência lhe confere respeito e credibilidade, ele está sempre aprendendo. É através do kamarãpi que o sheripiari realiza suas viagens nos outros mundos e adquire a sabedoria para curar os males e as doenças que afetam a comunidade.
A cura realizada através do kamarãpi é eficaz apenas para as doenças nativas causadas, geralmente, por meio da feitiçaria. Contra as “doenças de branco” os Ashaninka só podem lutar com o auxílio de remédios industrializados.
O piyarentsi, por sua vez, possui uma dimensão mais marcadamente festiva, mas também possui dimensões econômicas, políticas e religiosas. O ritual constitui o principal modo de sociabilidade e de interação social entre os grupos familiares. Nos piyarentsi discute-se de tudo: casamentos, brigas, caçadas, problemas com os brancos, projetos etc.
Em Apiwtxa, a organização de um ou vários piyarentsi ocorre com muita freqüência, geralmente todos os finais de semana. O convite para beber tem o caráter de uma obrigação social e rejeitá-lo é considerado uma ofensa. Após contar com a ajuda do homem para arrancar a mandioca, a mulher é a única responsável pela preparação da bebida.
Descascada, lavada e cozida, a mandioca (kaniri) é posta numa grande gamela (intxatonaki), onde é desmanchada com uma pá de madeira (intxapatari). Uma pequena porção é posta na boca e mastigada até adquirir consistência de pasta, momento em que é jogada na gamela. Este processo se repete com toda a mandioca. A gamela é então recoberta por folhas de bananeira e a massa deixada em fermentação de um a três dias. O convite é feito, geralmente, pelo marido, que passa de casa em casa avisando aos outros chefes de família que haverá piyarentsi.
Todos os Ashaninka da aldeia participam da festa, em que bebem grandes quantidades de piyarentsi. Embriagar-se nessa ocasião é sempre um objetivo e motivo de orgulho. Os homens demonstram sua resistência física, passando dias e noites bebendo, indo de casa em casa, sem dormir. No auge da embriaguez, os Ashaninka tocam suas músicas, dançam, riem. Afirmam que fazem piyarentsi para homenagear Pawa, que se alegra vendo os seus filhos felizes. Foi durante uma reunião de piyarentsi que Pawa reuniu seus filhos, embebedou-os e realizou as grandes transformações antes de deixar a Terra e subir ao céu.
Hoje, se as assembléias comunitárias aparecem como novos rituais gerados pela situação de contato, é ainda no piyarentsi que se fortalece tanto a política interna como externa. Além de conversarem sobre os assuntos do cotidiano da comunidade, no piyarentsi os Ashaninka discutem os projetos e é também aí que tentam conscientizar os parentes recém-chegados do Peru, explicando com orgulho a história da comunidade e sua organização.

- Nomes alternativos: Kampa
Classificação lingüística: Arawak
População: 869 (CPI/Acre - 2004)
Local: Acre (Breu, Amônia e Alto Envira)
Os Ashaninka têm uma longa história de luta, repelindo os invasores desde a época do Império Incaico até a economia extrativista da borracha do século XIX e, particularmente entre os habitantes do lado brasileiro da fronteira, combatendo a exploração madeireira desde 1980 até hoje. Povo orgulhoso de sua cultura, movido por um sentimento agudo de liberdade, prontos a morrer para defender seu território, os Ashaninka não são simples objetos da história ocidental. É admirável sua capacidade de conciliar costumes e valores tradicionais com idéias e práticas do mundo dos brancos, tais como aquelas ligadas à sustentabilidade socioambiental.
Os ashaninkas são hoje, no Acre, a única tribo que possui tecelagem própria. Eles produzem cerca de 150 tipos de peças, como roupas e bolsas artesanais.
Fonte : José Pimenta
Antropólogo, professor substituto do Depto. de Antropologia da UnB e pesquisador associado do IRD
www.socioambiental.org.br

domingo, 28 de março de 2010

Índios temem seca na Volta Grande do rio Xingu, onde hidrelétrica será construída

Para governo federal, população indígena não será diretamente afetada.

Leilão que definirá construtores da usina de Belo Monte será dia 20.Treze famílias de índios maias que vivem na margem da Volta Grande do Xingu, no Pará, temem que a construção da hidrelétrica de Belo Monte reduza o nível da água a ponto de inviabilizar a navegação e a pesca, fonte de alimentação da população.

No projeto da usina, antes da Volta Grande a água será desviada por canais para uma área a ser alagada. Os índios avaliam que, com a mudança no curso do rio, a outra parte - a Volta Grande - deve secar.

Foto: Mariana Oliveira / G1

Tribo maia, na margem do Rio Xingu (Foto: Mariana Oliveira / G1)

O presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) - órgão do governo federal que participou das pesquisas para Belo Monte -, Maurício Tolmasquim, afirmou ao G1 que os indígenas não serão diretamente impactados.

"O projeto original previa área inundada de 1,2 mil quilômetros quadrados e a área atual é de 516 quilômetros quadrados. Mudou justamente para evitar impactos sobre as terras indígenas", declarou. Segundo ele, os estudos mostram que a Volta Grande pode ter vazão reduzida, mas não vai secar nem perder a navegabilidade.

O líder indígena José Carlos Arara guarda foto tirada com Lula (Foto: Mariana Oliveira / G1)

Tolmasquim afirmou ainda que os índios foram ouvidos pelo governo durante o processo de audiências públicas com a população. "A grande maioria das comunidades indígenas é favorável [à hidrelétrica]. Tem um grupo de militantes locais contra, mas a massa da população local é favorável. Um grupo atua com a questão ideológica e pretende que [o local] fique intocável, mas não é necessariamente a visão de todos", afirmou o presidente da EPE.

Os índios dizem, porém, que deveriam ter sido feitas audiências específicas para tratar dos interesses das tribos.

Para o líder Leôncio Arara, da tribo maia, se a hidrelétrica for construída, o povo vai "cair em tristeza".

"Se vier a barragem, para mim significa uma crise. O Xingu vai ficar mais baixo, e a gente vai ser prejudicado. Estamos acostumados com essa floresta, essa riqueza. O que vai ser de nós?", questiona. "Essa barragem vai acabar com a gente, vai acabar com tudo."

Leôncio Arara disse que a população indígena está preparada para resistir à força. "Os parentes (outras tribos) falam em mobilização de 5 mil a 10 mil índios para acampar na barragem e daí vão dispostos a tudo para proteger nossa vida", afirmou.

Foto: Mariana Oliveira / G1

Família da tribo maia durante a refeição (Foto: Mariana Oliveira / G1)

O índio Josinei Arara disse que a resistência ocorrerá porque eles precisam navegar no rio para garantir a alimentação da tribo. "A gente vai lutar fortemente contra isso. Estamos dispostos a tudo. Se ficarmos de braço cruzado vai ser pior."

Josélia Arara, 27 anos e mãe de oito filhos, disse que as mulheres também vão ajudar. "Não somente os homens que estão dispostos a qualquer coisa. As mulheres vão ser prejudicadas e ajudarão para o que der e vier. Nós somos mais afetadas. E se as crianças ficarem doentes, como faremos se não tivermos navegabilidade para deixar a tribo?"



José Carlos Arara, teve um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no ano passado e guarda em um porta-retrato de sua casa a lembrança daquele dia. "Ele disse que jamais construiria algo que fosse prejudicar alguém e que não iria enfiar caminhão goela abaixo de ninguém, mas infelizmente não é o que parece", afirmou.

Para José Carlos Arara, a tribo está em um "beco sem saída".

"Não tem nenhum documento que diga que seremos afetados, mas está claro que todos os meios de vida serão afetados. E não temos ideia de como será a situação com a qual iremos nos deparar. Para nós, significa uma perda em relação ao meio de vida da população indígena."

Foto: Mariana Oliveira / G1

Índia prepara alimento na aldeia maia (Foto: Mariana Oliveira / G1)

Ribeirinhos
Em uma vila de ribeirinhos na margem do Xingu, a Ilha da Fazenda, território pertencente ao município de Senador José Porfírio, os moradores também dizem temer a seca na Volta Grande.

"Desde o início, eu não acho que vai ser bom porque vai ser uma morte. Um lado vai encher e o outro vai secar. Eu tenho a pesca como sobrevivência e não sei como vai ficar", diz o pescador Miguel Carreiro de Souza, de 52 anos, que tem como função na vila transportar as crianças para a escola em outra vila maior.

Fátima Ribeiro, de 59 anos, tem filhos e netos na ilha. "Para a gente vai ser muito ruim. A gente vive do que planta e colhe e não sabe direito como vai ficar tudo. E as crianças, como vai ser?", pergunta. Ela disse ainda temer que a "fúria" dos índios contra a hidrelétrica acabe prejudicando os ribeirinhos. "A gente se preocupa com violência, essas coisas. A gente só quer ficar aqui em paz."

Foto: Mariana Oliveira / G1

Índia prepara tracajá, espécie de tartaruga (Foto: Mariana Oliveira / G1)


Fonte:globo.com
Mariana Oliveira Do G1, em Altamira

sexta-feira, 26 de março de 2010

"Indios da etnia Arara"

Arara

Índia Arara se banha, com criança
© Nair Benedicto
Considerados extintos por volta da década de 1940, quando escasseiam notícias sobre sua movimentação pela região, os índios conhecidos por "Arara" no vale do médio Xingu voltaram à cena com a construção da rodovia Transamazônica, no início dos anos de 1970. O trecho que hoje liga as cidades de Altamira a Itaituba, no Estado do Pará, passou a poucos quilômetros de uma das grandes aldeias onde vários subgrupos Arara se reuniam no período de estiagem. A estrada cortou plantações, trilhas e acampamentos de caça tradicionalmente utilizados pelos índios. O que antes já era um povo pequeno foi apartado pela "estrada da integração nacional": seu leito principal, suas vicinais, seus travessões, suas picadas e clareiras acessórias formaram barreiras, impedindo o trânsito dos índios pelas matas e impondo limites à tradicional interação entre os subgrupos que, vivendo dispersos pelo território, articulavam-se numa rede intercomunitária coesa.
A consolidação do longo processo de atração, a partir de fevereiro de 1981, depois de mais de uma década de frustradas tentativas de contato, encontra alguns dos subgrupos Arara já desunidos e afastados. Pelo menos quatro deles ao sul do leito da nova rodovia, na altura do km 120, aglutinaram-se para enfrentar a penetração não indígena no território. Um outro ao norte, isolado e em fuga constante, é contatado em 1983, já com a ajuda daqueles contatados dois anos antes. Ainda mais um é contatado em 1987, já muito longe dos demais, apartado dos outros por razões internas ao povo Arara, mas cada vez mais isolado e restrito aos cantos mais ermos do território devido à ocupação e à exploração econômica avivadas na área indígena. Este último subgrupo talvez seja aquele submetido à situação pós-contato mais dramática, que ainda perdura pela indefinição oficial sobre as áreas destinadas aos Arara.

Foto: Michel Pellanders, 1987

Histórias e origens
Um mito de origem do mundo terreno explica o padrão de dispersão territorial que historicamente os Arara mantinham no interflúvio Tapajós-Tocantins. Originado num cataclismo celeste causado por uma enorme briga entre parentes, o mundo terreno foi o palco de um acordo político entre aqueles que, por serem causadores da tragédia inaugural, foram condenados a viver no chão. A divisão em pequenos subgrupos, independentes e autônomos, mas integrados numa rede de prestação intercomunitária, sobretudo para as temporadas de caça e festas, teria sido estabelecida como uma espécie de pacto a garantir a não repetição dos conflitos que deram origem à vida terrena. Também o etnônimo de que se servem tem relação com o mito de origem: Ukarãngmã - quase que literalmente "povo das araras vermelhas"- é como se denominam, numa referência à participação que aqueles pássaros teriam tido logo após a tragédia que deu origem ao mundo terreno. No mito, foram as araras vermelhas que tentaram levar de volta aos céus muitos dos que de lá caíram.
Falantes de uma língua da família Karib, os Arara pertencem à mesma sub-família dialetal - também chamada de Arara - que incluía os Apiacá do Tocantins (extintos), os Yaruma (extintos) e os Ikpeng, hoje no Parque Indígena do Xingu, povos que viviam dispersos por um amplo território que abarcava todo o vale do alto e médio Xingu e o rio Iriri. Em termos geográficos, os povos indígenas desta sub-família Arara ocupam uma posição geográfica intermediária em relação às maiores concentrações demográficas de falantes de línguas da família Karib: o maciço das Güianas e os formadores do alto rio Xingu.
Entretanto, a região dos rios Ronuro, Batovi, Culiseu, Culuene (justamente os formadores do rio Xingu, hoje área do Parque Indígena homônimo) é o lugar mais provável da dispersão original dos povos desta sub-família dialetal. Seu deslocamento pela bacia do Xingu parece ter coincidido com um movimento migratório Kayapó, que partiu dos campos do rio Araguaia em meados do século passado e atingiu a região do médio Xingu já no início deste século. Toda a região entre o Tapajós e o Tocantins (e particularmente o vale do Xingu) parece ter sido um lugar de movimentação constante de grupos indígenas, até o início do segundo quartel deste século, quando levas migratórias oriundas do nordeste brasileiro começam a alterar a dinâmica demográfica da região afetando as populações indígenas já ali instaladas.
Narrativas míticas Arara apontam a margem direita do Xingu como o lugar onde tudo teria começado: a formação do mundo atual, a geração do povo Arara, a dispersão dos subgrupos e o início dos conflitos com os inimigos "tradicionais". Dados históricos confirmam o trânsito dos Arara por entre as duas margens do médio rio Xingu até a fixação na sua margem esquerda, junto ao rio Iriri, depois de cruzarem o Xingu já abaixo da "Volta Grande", por volta de meados do século XIX. Tanto informações históricas - como as referências a conflitos com caçadores e trabalhadores em obras públicas - quanto a memória dos velhos Arara apontam para a região próxima a Altamira, já abaixo da foz do rio Iriri, como o lugar da maior concentração de assentamentos de subgrupos Arara no passado.
Ocupando a região do divisor de águas, entre o oeste Xingu, o leste do Tapajós e o sul do baixo Amazonas desde meados do século XIX, os Arara tinham à sua disposição recursos naturais oriundos da bacia do Xingu e também das águas que correm para o Amazonas.
Já na sua expedição ao Xingu, em 1896, o viajante Henri Coudreau mencionava a existência dos "Araras bravos" -subgrupos então sem qualquer contato com o branco - à esquerda do Xingu, na região entre o rio Curuá (à esquerda do alto rio Iriri) "até não longe do Amazonas". Lugar estratégico de multiplicação das possibilidades de adaptação ecológica e da otimização da utilidade dos recursos diversos que caracterizam as bacias do Xingu e do Amazonas, o divisor de águas permitia a cada grupo local, dependendo de sua localização particular, diferenças sutis quanto ao padrão de utilização de matérias-primas desigualmente distribuídas no território (as tabocas para flechas, as palhas para trançados e cestarias, e a maior ou menor ocorrência das palmeiras de inajá para a extração de uma bebida típica, etc). Ao mesmo tempo, o divisor de águas dava aos Arara o acesso a territórios de caça diferenciados e, por isso, mais produtivos em função das diferenças entre as estações de seca e chuva durante o ano.

Contato com a sociedade nacional
A história do contato dos Arara com a sociedade nacional é relativamente longa. Desde 1850 há notícias de contatos pacíficos entre índios Arara e moradores da região ribeirinha dos rios Xingu e Iriri nas proximidades de Altamira. Em 1853 eles figuram pela primeira vez nos registros oficiais, constando dos relatórios do Presidente da Província do Pará, depois de aparecem pacificamente no baixo rio Xingu. Em 1861, um grupo Arara permanece cerca de dez dias entre seringueiros abaixo da Cachoeira Grande do Iriri. Em 1873, o Bispo Dom Macedo Costa leva alguns Arara para Belém. Entre 1889 e 1894, eles são perseguidos por seringueiros na região do divisor de águas Amazonas-Xingu/Iriri. Durante sua expedição ao Xingu, em 1896, Coudreau encontra apenas uma única índia Arara, mas recolhe mais informações sobre eles: o seu caráter pacífico e errante em toda a região do Xingu e do Iriri, a comentada beleza de sua mulheres, a sua miscigenação com outros povos indígenas e, principalmente, sobre a existência dos "Arara bravos". Nas primeiras décadas deste século, os Arara chegam a visitar, em diferentes oportunidades, a cidade de Altamira.
Em momentos variados da história, muitos subgrupos Arara foram forçados a pequenas migrações no amplo território que ocupavam, seja por ataques de outros grupos indígenas (principalmente Kayapó e Juruna), seja por perseguições de seringueiros, caçadores ou colonos. Desde o início dos anos de 1950, gateiros e seringueiros do rio Iriri encontravam acidentalmente os Arara, que até o final da década costumavam aparecer em antigas moradas nas margens do rio.
Em 1961 os Arara chegaram a ser acossados pela Polícia de Altamira, que teria perseguido os índios para vingar a morte de um animal de estimação de um colono das cercanias da cidade. Em 1963 caçadores de tartaruga que subiam o Penetecaua são atacados pelos índios, que derrubam árvores para fechar o canal e emboscar os caçadores. Em 1964 o sertanista Afonso Alves da Cruz percorre os caminhos dos índios no Penetecaua: eram largos, grandes e muito limpos, como se houvesse o trânsito constante de uma população considerável. As plantações eram também avantajadas. Estimou-se o grupo em mais de 300 indivíduos. Os anos de 1964 e 1965 assistem a uma enorme movimentação de um grande grupo Kayapó (Kubenkankren) naquela região, onde teriam ocorrido os maiores conflitos com os Arara. Estes conflitos com os Kayapó ainda freqüentam a memória e o imaginário Arara como causadores de fugas, separações e desaparecimento de vários dos antigos grupos locais.
Os anos finais da década de 1960 assistem a uma mudança profunda na dinâmica de toda a região próxima à cidade de Altamira, com o início das obras de construção da rodovia Transamazônica e a radical transformação do perfil da região. Planejada para passar exatamente nos divisores de águas das bacias do Xingu/Iriri e do Amazonas (dadas as suas melhores condições geo-morfológicas para a construção de uma estrada que deveria perenizar-se), a Transamazônica passou a se impor como uma "barreira" espacial inexistente anteriormente. Cortando ao meio o território tradicionalmente usado e ocupado pelos Arara (o divisor de águas), a nova rodovia se tornou marco e limite da possibilidade de interação entre vários subgrupos. O impacto da implantação dos novos projetos em torno do leito da rodovia Transamazônica sobre o modo de vida tradicional dos Arara afetou principalmente o padrão de dispersão espacial e articulação política dos grupos locais e a possibilidade de exploração extensiva dos ecótipos diferenciados (micro-ambientes dos igarapés pertencentes às bacias do Amazonas e do Xingu/Iriri). A aglutinação estratégica de vários grupos locais em aldeias muito próximas para enfrentar as pressões da penetração não-indígena na região, e a limitação do território utilizável apenas à bacia do Xingu/Iriri, com a restrição do acesso à maior parte dos igarapés da bacia do Amazonas (que ficaram ao norte da rodovia) e a conseqüente perda da flexibilidade na utilização de ecótipos diferenciados, foram os resultados mais evidentes dos projetos que vieram a reboque da nova rodovia.

Subgrupos, áreas e aldeias
Tradicionalmente, uma rede intercomunitária de prestações múltiplas estabelecia as relações entre os vários subgrupos e definia os princípios básicos da vida social: a autonomia política e a independência econômica conjugavam-se à colaboração para os ciclos rituais; as alianças matrimoniais, por outro lado, dado o princípio residencial que os Arara seguem, dispersavam os homens e seus vínculos por vários dos subgrupos pertencentes à rede intercomunitária. A possibilidade de que estes padrões tradicionais da vida social Arara (dispersão e independência, articulação e aliança) pudessem efetivar-se na prática dependia, obviamente, da capacidade de cada subgrupo se relacionar com os demais. Sua história recente, marcada por deslocamentos forçados e pela procura de novos lugares para moradia e exploração econômica, a salvo das penetrações exógenas no território, modificou os critérios de escolha para os assentamentos de cada grupo local: não mais a busca de autonomia e independência como condição para a colaboração ritual e para as alianças matrimoniais; a simples possibilidade de sobrevivência física colocava-se em primeiro lugar. A escolha de novos assentamentos não obedecia mais à dupla condição de manter a autonomia e a independência e permitir, ao mesmo tempo, a articulação periódica com os demais grupos locais. Contra a forma da dispersão espacial tradicional, contra a autonomia política e a independência econômica somadas à colaboração ritual e às alianças matrimoniais, a história recente dos Arara impôs limites na possibilidade de atualizar o modo como operava a rede de prestações intercomunitárias.
A situação pós-contato trouxe uma realidade de redução espacial, com a conseqüente perda da possibilidade de exploração territorial ao modo tradicional, e de aglutinação e concentração demográfica de vários dos antigos subgrupos.
Há duas áreas legalmente definidas para os Arara, com situação jurídica e fundiária distinta: a Terra Indígena Arara e a Terra Indígena Cachoeira Seca do Iriri. A primeira é relativa aos subgrupos contatados entre 1981 e 1983, e a segunda, àquele subgrupo contatado somente em 1987. A área ao norte da rodovia Transamazônica foi completamente abandonada pelos índios, tanto como moradia, quanto como território de exploração econômica.
Todos os índios contatados entre 1981 e 1983 acabaram sendo aldeados ao sul do leito da rodovia, inicialmente em duas aldeias diferentes e, posteriormente, em uma única aldeia. Hoje em dia, a maior parte dos Arara vive numa aldeia levantada pela FUNAI após o contato, dentro da TI Arara, localizada nas proximidades do igarapé Laranjal, cuja população soma pouco mais de 100 indivíduos. Uma pequena parcela da população, em torno de duas dezenas de pessoas, que antes também viviam na aldeia do Laranjal foi deslocada para um posto de vigilância da FUNAI construído às margens do leito da Transamazônica, formando o núcleo de um outro "grupo residencial". A TI Arara tem um total de 139 habitantes indígenas.
O mais afastado, e ainda relativamente isolado dos demais, é o subgrupo contatado em 1987, aldeado nas proximidades do igarapé Cachoeira Seca, no alto rio Iriri, na TI Cachoeira Seca, contando com 56 indivíduos, todos descendentes de uma única mulher (que em 1994 ainda vivia).
A população total dos Arara no ano de 1998 era de 195 indivíduos.


Foto: Milton Guran

Antes do contato, os grupos locais eram integrados numa grande rede de prestações múltiplas (econômicas, cerimoniais, matrimoniais, etc.). As grandes reuniões realizadas na estação seca serviam também ao propósito de reunir estes vários grupos dispersos espacialmente. Hoje, a despeito da redução de vários grupos locais a uma única aldeia, transformados assim em grupos residenciais, eles ainda atuam basicamente como se estivessem na situação tradicional, com grande independência e autonomia. O impacto do contato se fez sentir principalmente nos arranjos residenciais: a morte de alguns velhos líderes e sogros durante e logo após o processo de atração quebrou vínculos entre pessoas que reorganizaram suas relações em outros grupos residenciais. Ainda que não se possa subestimar os prováveis efeitos do longo processo de contato, desde o final da atração a população Arara tem tido um crescimento demográfico bastante razoável. Algo em torno de 30% da população já nasceu na situação de contato permanente com a sociedade nacional. É claro que tais mudanças trouxeram algumas conseqüências, mas ainda não parecem ter alterado os principais traços da vida social Arara, nem o estatuto fundamental dos subgrupos. Na aldeia do Laranjal, cada um dos antigos grupos locais acabou por aglutinar-se, no geral, num mesmo grupo residencial, como expressão de sua natureza coletiva. Tais unidades residenciais se caracterizam como grandes casas coletivas, centradas sobre a figura de um homem já velho, pai da maior parte das mulheres e sogro dos homens adultos que ali vivem. Malgrado serem nomeados apenas pelo nome de seu velho líder e não terem um estatuto jurídico muito claro, tais grupos residenciais têm um evidente reconhecimento público quanto a seu caráter social: cada indivíduo é dito e tido como pertencendo a um grupo residencial específico, e as casas coletivas funcionam de fato como unidades sociais independentes e que, para vários aspectos, da vida social, operam como uma espécie de sujeito coletivo.
Diferente da aldeia do Laranjal, a aldeia levantada pelos índios junto ao Posto da FUNAI no igarapé Cachoeira Seca apresenta-se simplesmente como um pequeno aglomerado desordenado de casas ocupadas por unidades conjugais diferentes. Certamente porque, em se tratando de um único grupo local, cujo isolamento dos demais é produto de sua história peculiar, a configuração residencial ali ganhou mais indeterminação.
Os grupos residenciais são formados por uma junção de lógicas distintas. Os casamentos são definidos sobre a base mínima de exogamia de grupo natal. A residência uxorilocal, quase que compulsória para o primeiro casamento de um homem (os Arara são, no geral, poligínicos), é um princípio importante de recrutamento, mas que concorre com opções individuais de escolha sujeita a variações (prestígio e afinidades pessoais, pactos de solidariedade e cooperação entre pessoas, etc). Se as relações de afinidade formam um dado importante na composição dos grupos residenciais, uma outra condição é a necessidade de que os grupos residenciais se comportem como unidades eficientes de cooperação: um número razoável de homens adultos, solidários nas tarefas coletivas que os grupos devem desempenhar (a caça na estação seca, o preparo de uma roça coletiva, etc.). Afinidade e a necessidade de cooperação são princípios que organizam os grupos residenciais: a afinidade implicando numa forma de cooperação compulsória (um modo concreto de "serviço da noiva" a ser prestado a sogros e cunhados), que os Arara tentam evitar, e as relações de consangüinidade e de "amizade formal" que os Arara reconhecem (parcerias de caça e parcerias de guerra) numa outra forma de cooperação, menos tensa e mais amistosa (mas que, virtualmente, seria tão compulsória quanto a primeira). Há uma larga margem de imponderabilidade nas razões que orientam as escolhas pessoais que influenciam o modo de distribuição da população por entre as várias casas. Na aldeia do Laranjal, por exemplo, há três grupos residenciais reconhecidos, mas cinco casas diferentes: duas delas são habitadas por unidades conjugais que, por razões peculiares, são autônomas na moradia mas socialmente integradas em grupos residenciais maiores.

Os Arara não possuem um termo específico para "aldeia", reunião de casas em um espaço comum. A indistinção entre casa e aldeia aponta também para o fato de que, como no passado, e não muito remoto, uma única casa pode ser toda a extensão da moradia de um grupo local; sem o reconhecimento de uma "aldeia" propriamente dita, espaço de reunião de diferentes moradias, os Arara vêem como co-extensivas, a casa e a aldeia.

Economia, cosmologia e vida ritual
Atualmente, a aldeia do Laranjal é o palco privilegiado da vida social Arara. O posto de vigilância e a aldeia do Cachoeira Seca, como espaços de apenas um único grupo residencial, carecem de formas coletivas mais elaboradas de interação, cujo tempo e lugar se dão no pátio da principal aldeia e, principalmente, durante a estiagem, período das grandes caçadas e das festas que as acompanham.
Os ciclos econômicos e rituais convergem para a estação seca. Toda a agricultura, cuidada durante o período úmido do ano, serve não apenas aos propósitos da alimentação cotidiana quando as grandes caçadas inexistem. Ainda que a preferência explícita recaia sobre a macaxeira, quase tudo o que plantam além dela - batata, cará, milho, e frutas como abacaxi, banana etc. - servirá para a fabricação de uma bebida fermentada, concebida como a contra-dádiva necessária para as caçadas que acontecerão tão logo as chuvas cessem e a floresta esteja outra vez seca o suficiente para os caçadores seguirem trilhas e pistas dos animais. As trocas da carne de caça pelas bebidas fermentadas pedem sempre uma grande elaboração ritual, na qual os grupos residenciais expressam seu caráter coletivo: um grupo caça, outro fabrica bebida para retribuir as carnes que receberão. Durante toda a estação seca é isto o que se vê na aldeia do Laranjal: um grupo partindo para uma longa caçada, outro ocupando-se de colher das roças tudo o que pode ser transformado em bebida. Do ponto de vista do simbolismo associado aos ritmos econômicos, carne e bebida se articulam num sistema cujo eixo principal é a doutrina nativa sobre a circulação de uma substância vital, a que chamam ekuru. Passando do sangue dos animais abatidos à terra, e desta aos líquidos que nutrem e fazem crescer os vegetais, a substância vital é o objeto principal do desejo, e não apenas dos seres humanos, mas também de todos os seres que habitam o mundo: objeto de uma predação generalizada no mundo, a substância vital ekuru é o que os humanos buscam adquirir através da morte dos animais na caça e da transformação dos vegetais na bebida fermentada, chamada piktu, fonte primordial de aquisição de substâncias vitais pelos humanos.
A capacidade da terra em reprocessar as substâncias vitais, transformando-as nos nutrientes dos vegetais com os quais os humanos fazem bebidas, orienta também as práticas funerárias Arara. De hábito, os Arara não enterram seus mortos, mas lhes reservam uma plataforma na floresta, no interior de uma pequena casa funerária levantada especialmente para cada ocasião. Afastado da terra, o morto deve ir secando gradativamente, perdendo o que ainda lhe restava de substâncias vitais para o conjunto de seres metafísicos que passam a rondar os cadáveres, alimentando-se daquilo que antes dava vitalidade ao defunto. A funerária Arara é, assim, uma espécie de devolução das substâncias vitais que os humanos extraem do mundo; uma troca ou reciprocidade escatológica para com os demais seres do mundo.
Por outro lado, a circulação de ekuru se dá, entre os vivos, pelas trocas de carne por bebida, que se dão principalmente nos ritos que seguem o retorno dos caçadores. Deste modo, os ritos são o modo pelo qual a doutrina nativa de circulação da substância vital se transforma num princípio de articulação dos vários subgrupos num esquema de reciprocidade e dependência mútua. As atividades econômicas (caça e agricultura), os princípios de estruturação social (a divisão dos subgrupos) e as percepções nativas sobre o funcionamento do mundo ganham consistência nas práticas rituais associadas às trocas de carne por bebida. E, por estarem associadas às concepções nativas sobre o funcionamento do mundo, o xamanismo também tem aí o seu lugar.
O xamanismo Arara é uma instituição dispersa, difusa e generalizada entre os homens. Curadores e agentes da mediação com as potências metafísicas, todos os homens são iniciados e praticam pelo menos em parte as técnicas e artes xamânicas. E cabe eles também, ou pelo menos àqueles que desfrutam de algum prestígio ligeiramente maior, garantir, junto às potências metafísicas, as condições para que as caçadas e os ritos que fazem circular carnes e bebidas entre os vários subgrupos se concretizem.
Dentre as condições simbólicas da caça, há um rito reservado aos xamãs que, no interior da mata, dirigem fórmulas mágicas às entidades metafísicas que controlam as espécies animais (os oto) para pedir filhotes para serem criados pelos humanos. A captura de animais para criação é, assim, concebida como produto da intercessão de um xamã junto ao oto que controla aquela espécie particular. Por outro lado, o pedido de filhotes para criação interdita a caça de animais daquela espécie para o envolvido no rito mágico. Porém, tal interdição a que um xamã se sujeita não se estende a nenhum outro homem que, perambulando pelas matas, pode sem qualquer constrangimento abater os animais. De outro lado, as músicas que os Arara tocam durante os longos ciclos de festas da estação seca estão também intimamente relacionadas às representações nativas sobre as condições e práticas das caçadas. As longas trombetas executam peças melódicas conhecidas por sua relação com as principais espécies animais que são caçadas. Tocadas em grupos ou parcerias formais, as trombetas anunciam a morte dos animais para seus protetores espirituais ao mesmo tempo que servem como pretexto para o retorno dos caçadores à aldeia, depois de sua quase sempre longa estada na floresta. É pela seqüência das músicas que são tocadas na aldeia que os caçadores acompanham o andamento das etapas rituais que preparam sua chegada, quase sempre simulando uma invasão agressiva da aldeia que se dissolve pela oferta de piktu aos caçadores que entraram em confusa correria. A série ritual das música então continua, não mais com as músicas instrumentais relativas às relações com os animais e seus guardiões, mas com as músicas vocais, que são verdadeiros diálogos cerimoniais cantados para estabelecer as relações entre seres humanos, melhor, entre os que foram à caça e aqueles a quem cabe oferecer a bebida aos que trazem carne. Através de toda sua simbologia, os grandes ritos associados às caçadas coletivas são também um eficiente mecanismo através do qual valores éticos e morais se manifestam, se concretizam e servem à constituição de uma idéia nativa de sua coletividade. Uma intrincada rede de valores e princípios de interação relativos à boa conduta, à gentileza, à solidariedade e à generosidade tem, nos ritos, seu lugar privilegiado de expressão.

Situação atual
Dois são os grandes problemas com que os Arara se vêem às voltas na atualidade. Um deles é a recorrente situação das terras indígenas, com a indefinição oficial sobre a TI Cachoeira Seca do Iriri, sempre projetada para ser contígua à TI Arara, permitindo a reconstrução dos processos tradicionais de interação com o subgrupo lá aldeado e a garantia do necessário suporte espacial e ambiental para a reprodução do modo de vida Arara em seus próprios termos. Em 1994, por indicação da Associação Brasileira de Antropologia, atendi a uma solicitação da FUNAI para proceder a novos estudos sobre a definição da área indígena Cachoeira Seca do Iriri, onde foi aldeado o subgrupo contatado em 1987. A despeito do enorme esforço e do envolvimento dos próprios índios e de entidades e representantes de colonos e posseiros, que permitiram a construção de uma proposta acordada e relativamente consensual para a definição dos limites da área, solucionando problemas anteriormente causados pela inépcia e incompetência de alguns, não foi dado o seguimento devido ao processo de regularização da área, por razões que ignoro, mas das quais já desconfio.
O outro problema é o modo rápido, e muitas vezes desagregador, como estão se dando as interações dos índios com os milhares de colonos que os cercam. Apenas por conta de sua população pequena, do crescimento demográfico relativamente rápido e do aumento da influência do português no dia-a-dia, a reprodução sociocultural Arara já poderia estar bastante comprometida.
Entre 1987 e 1992, mesmo entre os mais novos e as mulheres - que têm uma interação mais constante com o pessoal do Posto da FUNAI -, raros eram aqueles que falavam de modo mais fluente o português. A partir de então, com a introdução progressiva de uma escola, com professoras contratadas pela Prelazia do Xingu, crianças e adolescentes começaram a usar mais intensamente o português, chegando a substituir o idioma nativo mesmo quando apenas entre si. Mas, em 1994, os índios adultos mais velhos ainda eram, com poucas exceções, quase que completamente monolíngues.
Agravando a situação, vários homens adultos, sobretudo aqueles que se mudaram para o posto de vigilância, começam a buscar junto aos colonos, vizinhos naquele limite da área, o acesso aos bens materiais que a FUNAI não mais fornece: em troca, muitas vezes os Arara têm deixado seus próprios afazeres para cederem seu trabalho às tarefas dos colonos. Esta interação cada vez mais constante tem aumentando também a influência de igrejas protestantes - que há muito já se insinuavam na escamoteada presença de um missionário dublê de lingüista entre os índios do posto de vigilância -, e começa a mostrar seus outros efeitos deletérios, como o consumo descomedido e descontextualizado de bebidas alcoólicas, que é estranha às tradições Arara mas comuns entre os colonos daquela região. Até quando tudo isto ficará circunscrito à parcela da população que, induzida a viver no posto de vigilância, está mais próxima e sujeita às influências perversas é algo que ainda não se consegue antever. Mas a realidade futura dos Arara dependerá certamente da capacidade que tenham de interagir sem perder as condições fundamentais para sua própria reprodução e manutenção dos aspectos centrais de seu modo de vida e sua visão de mundo.

uluri


As mulheres dessa tribo usam, como roupa, apenas uma espécie de cinto chamado uluri, feito de entrecasca de árvore. Se esse cinto se romper (por acaso), a mulher se sente desprotegida e nua. A presença deste cinto significa que a mulher não está sexualmente disponível, e a aproximação só acontece quando ela o retira. Alguns desses povos já estão extintos. Sua língua é a tupi. No ritual de transição entre a infância e a vida adulta, os meninos ficam reclusos na casa dos homens e têm que passar por sofrimentos físicos e dar provas de força. Embora não haja um espaço físico determinado, as meninas também têm que cumprir alguns rituais de passagem.


Nota sobre as fontes
Os registros etnográficos sobre os Arara aparecem pela primeira vez em artigos de Curt Nimuendajú. Antes deles, apenas esparsas informações histórias apareciam em relatórios administrativos sobre a antiga Província do Pará. Considerados extintos a partir da década de 1940, nenhuma nova informação sobre os Arara ficou registrada até a consolidação recente do contato. Pequenos relatórios lingüísticos foram produzidos inicialmente, apenas como auxílio, solicitado pela própria FUNAI a missionários-linguistas. A partir da segunda metade da década de 1980 novos estudos começam a ser realizados. A língua Arara é objeto de uma descrição fonética numa dissertação defendida na UNICAMP pelo missionário Isaac Souza, e de um relatório depositado no Setor de Lingüística do Museu Nacional, elaborado por Márnio Teixeira-Pinto a partir do Formulário Padrão para Estudo das Línguas Indígenas Brasileiras. Uma primeira descrição etnográfica mais sistemática, centrada nas concepções nativas sobre a doutrina nativa sobre os ciclos das substâncias vitais ekuru, foi apresentada na dissertação de mestrado de Márnio Teixeira-Pinto, que tem também publicado vários artigos temáticos, sobre pinturas e representações corporais, sobre parentesco, história do contato, e recentemente publicou em livro sua tese de doutorado, que apresenta uma descrição mais densa sobre vários aspectos da vida social Arara relacionados aos antigos ritos de sacrifício de inimigos, formas de caça, produção e distribuição das bebidas, as músicas executadas nos ritos, etc. Também sobre as músicas Arara há artigos de Jean-Pierre Estival.
Recentemente, um vídeo comercial sobre os Arara, realizado entre 1992 e 1994 como uma produção independente da Equilibrium Films e da Nova Films britânicos, que contou com a consultoria de Márnio Teixeira-Pinto, teve seus direitos comprados pela National Geographic Society que atualmente se prepara para lançar uma nova versão, revista também por Márnio Teixeira-Pinto.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Os povos indígenas brasileiros formam um rico e complexo conjunto de crenças e hábitos.


Os povos indígenas brasileiros formam um rico e complexo conjunto de crenças e hábitos.


A presença dos índios no território brasileiro é muito anterior ao processo de ocupação estabelecido pelos exploradores europeus que aportaram em nossas terras. Segundo os dados presentes em algumas estimativas, a população indígena brasileira variava entre três e cinco milhões de habitantes. Entre essa vasta população, observamos o desenvolvimento de civilizações heterogêneas entre as quais podemos citar os xavantes, caraíbas, tupis, jês e guaranis.

Geralmente, o acesso às informações sobre essas populações são bastante restritas. A falta de fontes escritas e o próprio processo de dizimação dessas culturas acabaram limitando as possibilidades de estudo das mesmas. Em geral, o maior contato desenvolvido entre índios e europeus aconteceu nas faixas litorâneas do nosso território, onde predominam os povos indígenas pertencentes ao grupo tupi-guarani. Apesar das várias generalizações, relatos do século XVI esclarecem alguns hábitos desse povo.

De acordo com esses registros, os povos tupi-guarani organizavam aldeias que variavam entre os seus 500 e 750 habitantes. A presença da aldeia era temporária e todo o seu contingente era dividido entre seis a dez casas, sendo que cada uma delas poderia variar de tamanho e comprimento de acordo com as necessidades materiais e culturais de cada aldeia. Para buscarem sustento, os tupis desenvolveram a exploração da coleta, da caça, da pesca e, em alguns casos, das atividades agrícolas.

Sob o ponto de vista político, essas comunidades não contavam com nenhum tipo de organização estatal ou hierarquia política que pudesse distinguir seus integrantes. Apesar disso, não podemos ignorar que alguns guerreiros e chefes espirituais eram valorizados pelas habilidades que detinham. Muitas vezes, diferentes tribos mantinham contato entre si em busca da manutenção de alguns laços culturais ou em razão da proximidade da língua falada.

A realização das tarefas cotidianas poderia variar segundo o gênero e a idade de cada um dos integrantes da aldeia. Em suma, as mulheres tinham a obrigação de desenvolver as atividades agrícolas, fabricar peças artesanais, processar os alimentos e cuidar dos menores. Já os homens deveriam realizar o preparo das terras e as atividades de caça e pesca. Tendo outro modelo de organização familiar, os índios organizavam casamentos e, em algumas situações, a poligamia era aceita.

No campo religioso, alguns desses povos acreditavam na existência dos espíritos, na reencarnação dos seus antepassados e na compreensão dos fenômenos naturais como divindades. Em diversas situações, esse corolário de crenças era fonte de explicação para a origem do mundo ou a ocorrência de algum evento significativo. Em alguns casos, os índios praticavam a antropofagia como um importante ritual em que os guerreiros da tribo absorviam a força e as habilidades dos inimigos capturados.

Historicamente, a situação dos índios variou entre quadros de completo abandono, perseguição e miséria. Até meados da segunda metade do século XX, alguns especialistas no assunto acreditavam que a presença dos índios chegaria a um fim. Contudo, estipulados em uma população de aproximadamente um milhão de indivíduos, os indígenas hoje buscam o reconhecimento de seus diretos pelo Estado e ainda sofrem grandes obstáculos no exercício de sua autonomia.
Por Rainer Sousa
Graduado em História
Equipe Brasil Escola

domingo, 21 de março de 2010

A historia dos índios contada por Pedro Martinelli

Os índios gigantes



1.
No final dos anos 70, o jornal O Globo me escalou para cobrir a expedição de contato com os índios gigantes, os Kranhacãcore (homem grande da cabeça redonda), como os inimigos Txucarramães os chamavam. Hoje são os Panará.
Esta frente de atração era chefiada pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, cuja missão era fazer o contato com os índios que estavam no rumo da rodovia Cuiabá-Santarém, que estava sendo contruída. Fui para ficar um mês e acabei ficando três anos.
Esta é a foto do primeiro contato. Foi publicada na primeira página depois que as partes íntimas do índio foram retocadas por ordem da censor que ficava na redação.

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2.

O som dos motores do Búfalo da FAB, um bimotor enorme com capacidade para transportar vários veículos, quebrou o ruído de machados e enchadões dos índios que destocavam os paus do campo de pouso nas margens do rio Peixoto de Azevedo.

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A missão do avião era lançar tambores para que os trabalhadores da rodovia Cuiabá-Santarém, a BR-163, construíssem uma balsa para atravessar equipamentos e tratores.

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Depois que os 35 homens comandados por um tenente do 9º BEC, Batalhão de Engenharia e Construção de Cuiabá, atravessaram o rio para continuar no rumo de Santarém, a expedição de contato, comandada pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, começou a construir canoas para descer o rio Peixoto de Azevedo e iniciar a aproximação com os Kranhacãrore.

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Hoje, quase 40 anos depois, a estrada fica intransitável na época das chuvas. Agora, a ameaça, segundo os ambientalistas, é o asfalto que os produtores de soja prometem levar até Santarém, uma saída muito mais lógica para a produção que os portos do Sul mas, em tempos de contas justas, não se sabe o que é pior. Passar asfalto e acelerar a destruição do pouco que resta de mata nativa na região de Santarém ou queimar milhões de óleo diesel para embarcar a soja em Paranaguá.
Mal ou bem a BR-163 ainda vai a algum lugar, pior estão as conterrâneas Transamazônica e Perimetral Norte, que não chegaram a engatinhar e já estão mortas. Poderiam, pelo menos, servir como mea-culpa, exemplo de serviço mal feito e descaso. Mas nem isso.
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A técnica de contato com índios isolados dos irmãos Villas Boas era a paciência. “Morar no quintal da casa deles” para ser observado, deixar presentes como facões, machados, colares de contas, bonecas, espelhos e não tomar iniciativa, “até que eles venham a nós”. Depois que fizemos o primeiro campo de pouso nas margens do rio Peixoto de Azevedo, Claudio Villas Boas aproveitava a vinda do pequeno avião da FAB para sobrevoar a aldeia Kranhacãrore e jogar presentes.



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O tempo de vôo do nosso acampamento até a aldeia era de 10 minutos no 019 da FAB, um pequeno avião de treinamento sempre pilotado por um jovem do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro.

O piloto circulava em volta da aldeia por alguns minutos, escolhia um lugar limpo para que o passageiro do banco de trás atirasse os presentes e embicava o nariz do avião para baixo, fazendo um razante de deixar os cabelos em pé. Os arqueiros Kranhacãrore não erravam. Na volta, o avião sempre tinha marcas e às vezes até pontas de flexas presas na fuselagem.

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4.

Numa manhã, Claudio Villas Boas encontrou a aldeia incendiada. No meio, um imenso varal com bordunas, arcos, flechas e instrumentos agrícolas. Naquela noite, Claudio e o irmão Orlando conversaram até tarde sobre o significado daquele gesto. No dia seguinte, Claudio decidiu: “temos que ir lá, pegar os presentes”. Todos ficaram apreensivos porque ninguém descartava a possibilidade de um armadilha. Seria muito fácil para os Kranhacãrore, era só esperar que todos estivessem no centro da aldeia e fazer o ataque. Não sobraria ninguém. Claudio estimava uma população de 300 índios. A nossa expedicão era formada por 28 índios xinguanos , Claudio, Orlando, Mamprim, Etevaldo e eu.
Claudio era um homem determinado. Não acreditava na hipótese do ataque e lembrava, “aconteça o que acontecer nenhum tiro, nem pra cima. Se for o caso eu aviso”. Ele compartilhava com Rondon o lema “morrer se for preciso, atirar jamais”.
Nos grandes deslocamentos, Claudio usava na cinta um revólver Smith Weston 38, cromado, cano longo. Eu o vi sacar esta arma duas vezes. Uma para dar um tiro numa surucucu e outra para apontar na cabeça do sargento do exército que havia dado um tiro nos índios - bom, mas esta é uma outra história que eu conto qualquer dia destes.
Levamos dois dias para achar a aldeia principal. Andamos o primeiro dia inteiro ziguezagueando até encontrar a primeira picada. Nossa comida era transportada por um índio que carregava nas costas um caldeirão com uma farofa de paca suficiente apenas para o primeiro dia.
À medida que chegávamos próximo da aldeia, a picada se dividia em vários ramais, quase todos iguais e da mesma largura, que levavam sempre nas roças. Andamos em todas até encontrar a picada mestra que ía alargando a medida que nos aproximavamos.
O clarão do aberto da aldeia ía aumentando na mesma proporção do medo. Claudio na frente entrou firme e rumou para o centro, atrás dele todos nós, enfileirados, em silêncio esperando pelo pior.
Nestas horas é bom ser fotógrafo. Coloquei a cara atrás da câmera e me senti como se estivesse dentro de uma armadura.
Em minutos estavamos todos confraternizando, um falatório imenso nas diversas línguas xinguanas, Caiapó, Txicão, Kamaiurá, Kuikuro e Txucarramãe. O índios da expedição estavam eufóricos. Recolhemos o que era possível carregar e dormimos na aldeia.
Eu, sempre com a “pulga atrás da orelha”, como dizia meu pai, lembrava das histórias de massacres do Orlando Villas Boas que tirava o sono de qualquer um.
5.
Depois do contato com os índios gigantes, os Kranhacãrore, os irmãos Claudio e Orlando Villas Boas se aposentaram. Claudio partiu para o Xingu uma semana depois de ter pego na barriga de um índio selando o contato definitivo.
Este momento, o do “beliscão” , fez parte do imaginário dos integrantes da expedição durante os três anos de trabalho na frente de atração. Nas conversas depois do jantar, Claudio dizia com os olhos molhados de emoção: “o dia que eu pegar na barriga de um índio (fazendo o gesto de um beliscão), será o fim deles”.
Claudio sabia o que iria acontecer com os Kranhacãrore, por isso quis sair logo. Não queria ver a cena fatal do índio na beira da estrada. Chamou um avião e levantou vôo do último campo de pouso que construiu. Lá de cima viu o rastro da estrada que avançava e seguiu para o Xingu com um nó na garganta. Uma semana depois chegava ao Peixoto o sertanista Apoena Meirelles, filho de Francisco Meirelles, que havia feito o contato com os índios Xavantes.
A principal missão de Apoena era ir até a aldeia para vacinar os índios. Logo que desceu do avião foi na direcão de um Kranhacãrore que estava na beira da pista, sacou seu 38 da cinta e mostrou para todos que o aguardavam como seria seu estilo de trabalho dali para frente.
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O passo seguinte depois do primeiro tiro é vestir uma camiseta.
Estávamos indo para a aldeira Kranhacãrore quando um índio pulou na picada oferecendo uma banana. Na outra mão segurava um punhado de flechas, o arco e uma pequena matula, um enbrulhado de folhas de banana amarrado com cipó. Tinha um pedaço de carne de caça assada e batata doce cozida.

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Era um jovem caçador que a partir do momento que vestiu aquela camiseta branca perdeu a camuflagem natural, não tinha mais a capacidade de mimetização para se aproximar da caça.
Virou um espantador.
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Desta forma, descarregando a sacaria do avião, apertando o gatilho de um revólver 38, visitando os trabalhadores da rodovia Cuiabá-Santarém que ficava a poucos quilômetros da aldeia, “uma passeio de criança” dizia Claudio Villas Boas, os Kranhacãrore foram se integrando e morrendo com a doença dos “brancos”.
Dois anos depois um avião da FAB transportou os últimos 74 índios de uma população estimada em 300 para o Xingu, para serem vizinhos de seus maiores inimigos, os Kayapó.
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*Fotos e textos de Pedro Martinelli, o fotojornalista que anda, andou muito, continua andando, navegando, há 30 anos, registrando histórias da Amazônia. Publicados originalmente em seu blog.