Os índios gigantes
1.
No final dos anos 70, o jornal O Globo me escalou para cobrir a expedição de contato com os índios gigantes, os Kranhacãcore (homem grande da cabeça redonda), como os inimigos Txucarramães os chamavam. Hoje são os Panará.
Esta frente de atração era chefiada pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, cuja missão era fazer o contato com os índios que estavam no rumo da rodovia Cuiabá-Santarém, que estava sendo contruída. Fui para ficar um mês e acabei ficando três anos.
Esta é a foto do primeiro contato. Foi publicada na primeira página depois que as partes íntimas do índio foram retocadas por ordem da censor que ficava na redação.
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2.
O som dos motores do Búfalo da FAB, um bimotor enorme com capacidade para transportar vários veículos, quebrou o ruído de machados e enchadões dos índios que destocavam os paus do campo de pouso nas margens do rio Peixoto de Azevedo.
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A missão do avião era lançar tambores para que os trabalhadores da rodovia Cuiabá-Santarém, a BR-163, construíssem uma balsa para atravessar equipamentos e tratores.
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Depois que os 35 homens comandados por um tenente do 9º BEC, Batalhão de Engenharia e Construção de Cuiabá, atravessaram o rio para continuar no rumo de Santarém, a expedição de contato, comandada pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, começou a construir canoas para descer o rio Peixoto de Azevedo e iniciar a aproximação com os Kranhacãrore.
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Hoje, quase 40 anos depois, a estrada fica intransitável na época das chuvas. Agora, a ameaça, segundo os ambientalistas, é o asfalto que os produtores de soja prometem levar até Santarém, uma saída muito mais lógica para a produção que os portos do Sul mas, em tempos de contas justas, não se sabe o que é pior. Passar asfalto e acelerar a destruição do pouco que resta de mata nativa na região de Santarém ou queimar milhões de óleo diesel para embarcar a soja em Paranaguá.
Mal ou bem a BR-163 ainda vai a algum lugar, pior estão as conterrâneas Transamazônica e Perimetral Norte, que não chegaram a engatinhar e já estão mortas. Poderiam, pelo menos, servir como mea-culpa, exemplo de serviço mal feito e descaso. Mas nem isso.
3.
A técnica de contato com índios isolados dos irmãos Villas Boas era a paciência. “Morar no quintal da casa deles” para ser observado, deixar presentes como facões, machados, colares de contas, bonecas, espelhos e não tomar iniciativa, “até que eles venham a nós”. Depois que fizemos o primeiro campo de pouso nas margens do rio Peixoto de Azevedo, Claudio Villas Boas aproveitava a vinda do pequeno avião da FAB para sobrevoar a aldeia Kranhacãrore e jogar presentes.
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O tempo de vôo do nosso acampamento até a aldeia era de 10 minutos no 019 da FAB, um pequeno avião de treinamento sempre pilotado por um jovem do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro.
O piloto circulava em volta da aldeia por alguns minutos, escolhia um lugar limpo para que o passageiro do banco de trás atirasse os presentes e embicava o nariz do avião para baixo, fazendo um razante de deixar os cabelos em pé. Os arqueiros Kranhacãrore não erravam. Na volta, o avião sempre tinha marcas e às vezes até pontas de flexas presas na fuselagem.
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4.
Numa manhã, Claudio Villas Boas encontrou a aldeia incendiada. No meio, um imenso varal com bordunas, arcos, flechas e instrumentos agrícolas. Naquela noite, Claudio e o irmão Orlando conversaram até tarde sobre o significado daquele gesto. No dia seguinte, Claudio decidiu: “temos que ir lá, pegar os presentes”. Todos ficaram apreensivos porque ninguém descartava a possibilidade de um armadilha. Seria muito fácil para os Kranhacãrore, era só esperar que todos estivessem no centro da aldeia e fazer o ataque. Não sobraria ninguém. Claudio estimava uma população de 300 índios. A nossa expedicão era formada por 28 índios xinguanos , Claudio, Orlando, Mamprim, Etevaldo e eu.
Claudio era um homem determinado. Não acreditava na hipótese do ataque e lembrava, “aconteça o que acontecer nenhum tiro, nem pra cima. Se for o caso eu aviso”. Ele compartilhava com Rondon o lema “morrer se for preciso, atirar jamais”.
Nos grandes deslocamentos, Claudio usava na cinta um revólver Smith Weston 38, cromado, cano longo. Eu o vi sacar esta arma duas vezes. Uma para dar um tiro numa surucucu e outra para apontar na cabeça do sargento do exército que havia dado um tiro nos índios - bom, mas esta é uma outra história que eu conto qualquer dia destes.
Levamos dois dias para achar a aldeia principal. Andamos o primeiro dia inteiro ziguezagueando até encontrar a primeira picada. Nossa comida era transportada por um índio que carregava nas costas um caldeirão com uma farofa de paca suficiente apenas para o primeiro dia.
À medida que chegávamos próximo da aldeia, a picada se dividia em vários ramais, quase todos iguais e da mesma largura, que levavam sempre nas roças. Andamos em todas até encontrar a picada mestra que ía alargando a medida que nos aproximavamos.
O clarão do aberto da aldeia ía aumentando na mesma proporção do medo. Claudio na frente entrou firme e rumou para o centro, atrás dele todos nós, enfileirados, em silêncio esperando pelo pior.
Nestas horas é bom ser fotógrafo. Coloquei a cara atrás da câmera e me senti como se estivesse dentro de uma armadura.
Em minutos estavamos todos confraternizando, um falatório imenso nas diversas línguas xinguanas, Caiapó, Txicão, Kamaiurá, Kuikuro e Txucarramãe. O índios da expedição estavam eufóricos. Recolhemos o que era possível carregar e dormimos na aldeia.
Eu, sempre com a “pulga atrás da orelha”, como dizia meu pai, lembrava das histórias de massacres do Orlando Villas Boas que tirava o sono de qualquer um.
5.
Depois do contato com os índios gigantes, os Kranhacãrore, os irmãos Claudio e Orlando Villas Boas se aposentaram. Claudio partiu para o Xingu uma semana depois de ter pego na barriga de um índio selando o contato definitivo.
Este momento, o do “beliscão” , fez parte do imaginário dos integrantes da expedição durante os três anos de trabalho na frente de atração. Nas conversas depois do jantar, Claudio dizia com os olhos molhados de emoção: “o dia que eu pegar na barriga de um índio (fazendo o gesto de um beliscão), será o fim deles”.
Claudio sabia o que iria acontecer com os Kranhacãrore, por isso quis sair logo. Não queria ver a cena fatal do índio na beira da estrada. Chamou um avião e levantou vôo do último campo de pouso que construiu. Lá de cima viu o rastro da estrada que avançava e seguiu para o Xingu com um nó na garganta. Uma semana depois chegava ao Peixoto o sertanista Apoena Meirelles, filho de Francisco Meirelles, que havia feito o contato com os índios Xavantes.
A principal missão de Apoena era ir até a aldeia para vacinar os índios. Logo que desceu do avião foi na direcão de um Kranhacãrore que estava na beira da pista, sacou seu 38 da cinta e mostrou para todos que o aguardavam como seria seu estilo de trabalho dali para frente.
6.
O passo seguinte depois do primeiro tiro é vestir uma camiseta.
Estávamos indo para a aldeira Kranhacãrore quando um índio pulou na picada oferecendo uma banana. Na outra mão segurava um punhado de flechas, o arco e uma pequena matula, um enbrulhado de folhas de banana amarrado com cipó. Tinha um pedaço de carne de caça assada e batata doce cozida.
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Era um jovem caçador que a partir do momento que vestiu aquela camiseta branca perdeu a camuflagem natural, não tinha mais a capacidade de mimetização para se aproximar da caça.
Virou um espantador.
7.
Desta forma, descarregando a sacaria do avião, apertando o gatilho de um revólver 38, visitando os trabalhadores da rodovia Cuiabá-Santarém que ficava a poucos quilômetros da aldeia, “uma passeio de criança” dizia Claudio Villas Boas, os Kranhacãrore foram se integrando e morrendo com a doença dos “brancos”.
Dois anos depois um avião da FAB transportou os últimos 74 índios de uma população estimada em 300 para o Xingu, para serem vizinhos de seus maiores inimigos, os Kayapó.
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*Fotos e textos de Pedro Martinelli, o fotojornalista que anda, andou muito, continua andando, navegando, há 30 anos, registrando histórias da Amazônia. Publicados originalmente em seu blog.