Como fazer tudo errado
Imenso projeto de assentamento vira fazenda de gadoJosé Maria Tomazela
Serraria na cidade de Apuí (AM). Foto: José Luís da Conceição/AE
“No começo, todo dia chegavam caminhões e ônibus com gaúchos e catarinenses”, lembra o vice-prefeito de Apuí, Aminadao Gonzaga de Souza (PT). Na época, havia pouca restrição ao desmatamento. Os assentados podiam derrubar até 50% da mata, mas muitos botaram tudo abaixo. “O plano era incentivar o plantio de arroz, milho e café, mas o governo não deu condições”, diz Souza. O que deveria ser o novo celeiro do Amazonas só produziu madeira, extraída pelos assentados.
Anos depois, o governo Fernando Henrique Cardoso criou o Projeto Acari, que ampliou o antigo assentamento. Mais 3.500 lotes foram distribuídos, com fartura de recursos para amparar os assentados, todos sem-terra, que deveriam desenvolver seus plantios em harmonia com a floresta – só poderiam desmatar 20% do lote. De novo, faltaria assistência. “Era fim de governo, as famílias foram trazidas às pressas e jogadas na terra”, diz o ex-assentado Henrique da Luz Bezerra. “Foi um assentamento de mentira.”
Ele agüentou menos de dois anos. Depois de 38 malárias – sua mulher contraiu 30 –, Bezerra jogou a toalha. Hoje conta que milhares de assentados pegaram o dinheiro do governo, transferiram a titularidade dos lotes e foram embora. Assim, após consumir uma soma incalculável de dinheiro público, o ambicioso projeto de assentamento agrícola transformou-se numa grande fazenda de gado. Mais de 50% dos 11 mil lotes – ou 1 milhão de hectares – estão ocupados ilegalmente por fazendeiros, muitos deles autoridades dos municípios em volta.
O paranaense Euclides Motter, de 34 anos, era menino quando chegou lá. Em 1996, conseguiu um lote. Formou-se técnico agrícola e virou líder dos agricultores. Em 2005, assumiu a direção do Incra na região. “Encontramos mais de 4 mil lotes com fazendeiros.” A maioria desmatou mais do que podia; muitos negociaram o desmatamento com madeireiros. Motter autuou os ocupantes ilegais. No ano passado, o Ministério Público notificou os 56 maiores ocupantes – alguns têm até 50 lotes, entre eles, grandes pecuaristas, autoridades e até empresas agropecuárias.
Os pecuaristas criaram o Sindicato Rural do Sul da Amazônia e patrocinaram um lobby fortíssimo, conta Motter. “Invocaram leis fundiárias que permitem a regularização de até 500 hectares ocupados. Mas a legislação não vale para assentamentos.” Ele conta que muita gente enriqueceu à custa do governo, como um ex-prefeito que montou empresa para abrir estradas vicinais. Motter briga para reorganizar o assentamento, numa luta quixotesca: a única viatura do Incra está com o motor fundido e ele, ameaçado de morte.
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