terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Xondaro — A arte marcial dos guaranis

As grandes questões sobre a vida guarani — enigmas que atraem e fascinam — ainda não conseguiram ser respondidas de maneira aceitável
Bartolomeu Meliá, investigador da cultura guarani



Os índios guaranis possuem uma interessante técnica de luta desconhecida pela maioria dos brasileiros, até mesmo pelos adeptos das artes marciais. Ela se denomina Xondaro (pronuncia-se xondáro) e curiosamente lembra aspectos das práticas orientais, como a ênfase no equilíbrio, gestos baseados nos movimentos de animais e a atitude de “desviar-se” — preferindo não se contrapor ao oponente, deixando-o gastar suas energias.

A técnica propicia uma eficiência tal que, segundo os guaranis, os antigos guerreiros Xondaro conseguiam agarrar flechas em pleno vôo. Assim como a capoeira, que pode exercer a função de luta ou de dança — conforme as circunstâncias —, a Xondaro também possui um papel múltiplo. Luta, dança e canto. Porém, como música e dança, a Xondaro está totalmente integrada às experiências religiosas xamânicas, aparentemente não sendo exercitada isoladamente como folguedo.

Guardiões da aldeia

O guarani Timóteo Verá Popyguá prestou um depoimento sobre o assunto, em 1998, que foi incluído no CD Memória Viva Guarani (Ñande Reko Arandu).

Contou ele que os guaranis são iniciados na Xondaro — que ora ele identifica como dança e ora como exercício guerreiro — desde pequenos. E que o objetivo é desenvolver o equilíbrio do corpo e a saúde.

Explicou que o principal treinamento “hoje em dia” envolve o ato de desviar-se (Obs: não esclareceu se antigamente o método centrava-se em outro ato). A antropóloga Deise Lucy Montardo pôde assistir a alguns desses treinos nas aldeias que visitou para elaborar sua tese de pós-graduação na USP, Através do mbaraka: música e xamanismo guarani.“No ritual observa-se um comportamento que remete, de nosso ponto de vista, à noção de artes marciais. Um dos treinamentos mais significativos efetuados nos rituais guaranis é o aprender a ‘desviar-se’ em danças/lutas. O comportamento de não se contrapor, característico dos Guarani, é trabalhado corporalmente”, relatou ela.

Popyguá falou também da grande utilidade e eficiência da técnica no que se refere ao aprimoramento dos sentidos, da agilidade, do senso de direção — extremamente necessários para a vida na mata. Disse que o reflexo do guerreiro possibilitava a ele agarrar flechas no ar. Referiu-se também ao fato de que os praticantes da Xondaro são guardiões das aldeias e também dos rituais xamânicos, agindo como uma espécie de soldados da chamada casa de reza, bem como assistentes dos pajés.

A seguir, um resumo do depoimento:
(...) O menino começa a dançar, começa a frequentar esta dança. Ele tem seu próprio equilíbrio no seu próprio corpo. Xondaro, hoje em dia, a gente pratica mais para desviar, para dançar, para ter equilíbrio e para ter saúde. A prática do Xondaro é comum entre os guaranis.

(...) Xondaro é preparado para ser guerreiro. Tem certos ensinamentos. Eles ensinam com borduna, com arco e flecha. Na época, o guarani usava arco e flecha, ele atirava numa pessoa. E a pessoa, se fosse Xondaro, pegava aquela flecha, com o reflexo. Então, tudo isto eles ensinavam dentro do Xondaro. Principalmente para você sair para caçar, para o mato, para eles não se perderem, como é que ele tem que andar, como é que ele tem de retornar. (...) Tudo isto tem cada sentido. E o mestre Xondaro explica porque.

(...) Os Xondaro da casa de reza (opy) são guardiões. Este é o Xondaro ocayguá. (...) Tem Xondaro na porta da casa de reza, do lado de fora e do lado de dentro. Também acompanha o pajé quando ele vai benzer uma pessoa doente.

Tem outro Xondaro que é o Xondaro da aldeia mesmo. Antigamente a gente falava Xondaro ovay. A pessoa que pode guerrear no momento de ataque. O Xondaro da casa de reza não vai sair por aí guerreando. Aquele Xondaro da comunidade, sim, vai. Sempre tinha esta função. Não hoje.

Todas as noites

As pessoas que vêem os guaranis vendendo artesanato nas calçadas sujas das cidades ou na beira das estradas, com suas roupas maltrapilhas, seu jeito tímido e encolhido, os olhos baixos, sua fala que é mais silêncio do que palavra — aparentemente conformados com um suposto destino trágico e inexorável — possivelmente não imaginam a força e a vitalidade espirituais que ainda restam a esses brasileiros originais.

As pessoas não conjeturam a vontade de viver e a resistência à opressão que são refletidas em inúmeros aspectos de seu cotidiano nas ocas. Um desses aspectos é o ritual noturno. Pouca gente sequer sonha o que é uma noite numa aldeia guarani.

Todos os dias, geralmente a partir das 4 da tarde, durante cerca de quatro horas — às vezes prolongando-se muito mais, indo até o nascer do sol — eles dançam, cantam, oram, curam. E executam a Xondaro. Principalmente como dança e música.

O rito xamânico diário é denominado de purahéi pelos subgrupos mbyá e chiripá e de jeroky pelos subgrupos kaiová e nhandeva. Ali a Xondaro (ou Sondaro, como se escreve às vezes) aparece primeiramente como um exercício baseado no movimento de certos animais.

“Sobre o Sondaro, (a antropóloga Maria Inês) Ladeira afirma que seu intuito é o aquecimento, isto é, esquentar o corpo para as rezas noturnas e proteger a opy; e que sua coreografia segue o princípio de três pássaros: o colibri (para aquecimento do corpo), o gavião (para evitar que o mal entre na opy) e a andorinha, cuja coreografia é uma luta onde um deve ‘derrubar’ o outro com os ombros ou esquivar-se de um possível tombo (para fortalecer os sondaro contra o mal)” — diz Deise Montardo em sua tese.

Defesa também contra bala

Quando se assiste a essas danças guaranis, de acordo com a antropóloga, “a associação com a noção que temos de lutas marciais é imediata. É comum a várias artes marciais a mimese de animais. No tai-chi, por exemplo, a maioria dos movimentos tem nomes de atos dos animais.”
E prossegue: “Nestas danças/lutas, segundo (Ivori José) Garlet, quando dançadas dois a dois, a região a qual objetivam acertar é a dos ilíacos, ossos da bacia. Nas danças em roda, o yvyra’ija — o dançarino/guerreiro xondaro, ajudante do xamã— vai passando o popygua (instrumento composto por duas varas amarradas) por baixo dos pés das pessoas que vêm em sentido contrário, aumentando, aos poucos, a sua altura em relação ao chão.” Arthur Benite, guarani da aldeia do Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC), contou à antropóloga que os mestres Xondaro, se treinam bastante, conseguem “se negar até de bala”, ou seja, defendem-se até de tiros. Segundo Benite, um dos treinamentos é feito no ritual noturno, quando o mestre fica no meio do círculo e chama um por um, da direita para a esquerda, para dançar.

Agilidade, esperteza e alegria

Candida Graciela Chamorro Arguello, no artigo O rito de nominação numa aldeia mbyá-guarani do Paraná, publicado na revista Diálogos, da Universidade de Maringá (PR) deu mais detalhes sobre a prática Xondaro num ritual noturno:

“Quase toda a aldeia já estava reunida em frente da casa de reza (opy), no início da tarde; os xondaro, porém, iniciaram sua dança somente às 15 horas. A dança iniciou-se ao som do violino de três cordas. Os integrantes se posicionaram em círculo. Embora mais suaves, seus movimentos lembravam a capoeira afro-brasileira. Os dançarinos alternavam o apoio de seus corpos sobre cada uma das pernas. O tronco era levemente inclinado ora para frente, ora para os lados, ora para trás. O corpo demonstrava a versatilidade de seus membros. Os braços, as pernas, o tronco, a cabeça, os ombros, com muita leveza, eram dirigidos em direção ao alvo: o corpo do outro. Semelhantemente, com a mesma destreza, cada xondaro tentava evitar que seu corpo fosse alcançado pelo ataque daquele que era seu ‘inimigo’.

Os xondaro são homens (meninos, adolescentes e adultos) treinados fisicamente para a luta. (...) No relato de alguns, antigamente, esta dança era uma preparação para defesa, em caso de ataque dos brancos (jurua), por isso alguns traduzem o termo por ‘dança física’. (...) Ela desenvolve as crianças, tornando-as ágeis (irari) e espertas (imba’e kuaa), além de alegrar e divertir (ombovy’a) toda a comunidade.

Indagados sobre a possibilidade desta dança ter sido aprendida de outros povos indígenas ou dos brancos, os Mbyá-Guarani de Palmeirinha são categóricos em afirmar que não. (...) Durante a dança, o líder do grupo enfrentou várias vezes o desafio dos dançarinos. Estes, um por um, sem sair do círculo, aproximavam-se dele e iniciavam uma luta corporal nos passos da dança. A dança foi ficando mais interessante, como se em cada gesto progredisse uma narrativa. O líder esquivava-se com facilidade dos movimentos que procuravam alcançá-lo. Nesse sentido, a dança dos xondáro se assemelha a um folguedo, cuja trama consiste em o líder se manter intocado, em ele não ser ‘ferido’.

Assim, a dança se prolongou por quase três horas, incluindo algumas pausas. Nesse tempo, todos os que faziam parte do ritual demonstraram ser detentores de resistência e equilíbrio corporal (...)”

Os ilustres desconhecidos

Quando se defronta com fenômenos tão ricos como a Xondaro torna-se fácil constatar — como o fazem diversos antropólogos, etnógrafos, historiadores e arqueólogos — que parte notável da tradição indígena, tão vasta e complexa, ainda não foi devidamente estudada, compreendida e divulgada.

Mesmo as culturas exaustivamente inventariadas, como a guarani, ainda constituem um desafio aberto. Egon Schaden, um dos maiores pesquisadores da temática guarani, costumava pregar que “é necessário se destruir o mito de que a sociedade Guarani já é bastante conhecida e se insistir na urgência de se retomar o estudo dessa cultura (...)”.

Outro nome de grande expressão, o paraguaio León Cadogan, também dizia que os guaranis são tão conhecidos que até pareceria supérfluo um estudo a seu respeito. Porém, advertia ele, “este conhecimento é muito superficial”.

O antropólogo Aldo Litaiff, da Universidade Federal de Santa Catarina, concorda com Cadogan: “Esta situação (de superficialidade) persiste atualmente”.

O etnógrafo Bartomeu Meliá, talvez o maior investigador vivo da cultura guarani lamenta que “as grandes questões sobre a vida guarani — enigmas que atraem e fascinam — ainda não conseguiram ser respondidas de maneira aceitável.”

Diversos fatores concorrem para essa realidade, mas o principal deles é a prática costumeira das classes dominantes de tentar ser sempre a escritora exclusiva da História, só estimulando estudos de temas que lhes interessam. E sob o enfoque que lhes interessa.

Na outra ponta está o ressabiamento justificado do índio, que cansado de ser explorado e desprezado, ergue a cabeça com dignidade e se fecha em copas, preferindo não expor nem a si e nem a seus conhecimentos àqueles que nunca o ouviram com respeito.

Afirma Meliá: “O rosto Guarani, deformado pelos preconceitos e multiplicado de mil formas pelos interesses dos tempos e das situações, que para os Guarani nunca deixaram de ser coloniais, esse rosto Guarani nega-se a aparecer e refugia-se numa palavra não escutada pela nossa sociedade, numa palavra que ele guarda no segredo de sua casa, no seu opy e no íntimo de suas entranhas”.

Autora:Rosana Bond    Do jornal a nova democracia

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