Viver na cidade grande não é abrir mão de ser indígena
Série especial apresenta o cotidiano e o contexto da vida de indígenas nos conglomerados urbanos de Campo Grande, Manaus, São Paulo e Porto Alegre. Reportagens examinam também a relação desses povos com o poder público
Priscila D. de CarvalhoO ônibus que leva os moradores do bairro Brasileirinho até o terminal que permite acesso a diferentes pontos de Manaus só passa de hora em hora. E pode demorar mais por causa da castigada estrada de terra que sacode sem dó a carcaça e as entranhas do coletivo. São cerca de dez minutos a pé do ramal 8 do Brasileirinho, onde vivem 16 famílias do povo Kokama, até o ponto de ônibus. Faço o trajeto acompanhada de uma liderança Kokama, Sebastião, e de sua esposa. Quando chegamos à parada, o dono do bar em frente, solícito, avisa que o ônibus acabou de passar. O próximo demora?, pergunto. Demora. Sentamos. A esposa de Sebastião, calada até então, senta e abre seu caderno para estudar o idioma Kokama, que ela não aprendeu quando criança.Um carro se aproxima e oferece carona. Aceitamos.- Para onde estão indo?, pergunta o homem sentado no banco do passageiro.- Para o centro.
- De onde são?
- Do interior. E ela á é de Brasília.
- Brasília? E veio fazer o que aqui?
- Sou jornalista. Vim fazer uma matéria sobre índios que vivem em Manaus. Visitei um grupo de Kokama que mora aqui no Brasileirinho – respondi.
- Mas aqui não tem índio, não. Quando eles chegam aqui já não são mais índios.Mas Manaus tem índios, e eles se mobilizam por direitos básicos como moradia, transporte e educação, assim como em outros centros urbanos brasileiros. Na capital do Amazonas, eles são mais de 7 mil. As dúvidas sobre a presença indígena em grandes cidades, aliás, sofreram um duro golpe do mais recente censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2000. Nele, 734 mil pessoas se autodeclararam indígenas. E 383.298 destas vivem em cidades. A população urbana ultrapassou a rural e representa 52,21% do total de indígenas no Brasil. O IBGE mostrou também que, dos 20 municípios com maior numero de habitantes indígenas, 10 são capitais.
Os indígenas não migraram do campo para a cidade sozinhos. Sua movimentação acompanha o processo de urbanização vivido por toda a população brasileira, intensificado desde a década de 1950. Manaus é o exemplo mais contundente: a instalação da Zona Franca fez a população da cidade aumentar de 300 mil pessoas, em 1970, para 800 mil, em 1985. Em 2000, Manaus já tinha 1,4 milhões de habitantes, concentrando quase a metade dos 3 milhões de habitantes de todo o estado do Amazonas. E, dos 18.783 indígenas que vivem nas cidades do estado, 7.894 estão na capital, de acordo com o IBGE.
A história das migrações já faz parte das vidas Kokama, Apurinã, Baniwa, e de tantos outros que partiram em busca de educação formal, saúde ou renda em Manaus. É parte da vida dos Terena, no Mato Grosso do Sul, ou dos Kaingang, no Rio Grande do Sul, que migram para cidades a poucas horas de suas aldeias de origem, em busca de renda ou de distância das terras exíguas para uma população crescente. E também das vidas dos povos Pankararu, Fulni-ô, Pankararé, Potiguara, Atikum, e de tantos outros que saíram do Nordeste para tentar a vida em favelas e bairros periféricos de São Paulo.Histórias de chegadas
As migrações não são apenas escolhas individuais. Elas fazem parte da própria dinâmica do contato entre as sociedades. É o que pondera o historiador Antonio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande: “No Mato Grosso do Sul, as migrações são conseqüências das políticas públicas integracionistas que falharam, da criação de reservas pequenas e com uma visão de integração, da falta de demarcações de terras. Ao mesmo tempo em que o governo federal não demarca terras, as administrações locais fazem aldeias urbanas”, questiona. Aos poucos, a administração pública passa a ter que atender os grupos na cidade.Brand toca em uma questão que sempre fica implícita quando se fala em índios na cidade: se vieram para os centros urbanos, por que estas pessoas precisam de políticas públicas específicas? Afinal, são populações que saíram de suas terras de origem.A antropóloga Lucia Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), rejeita a idéia de que as populações indígenas são necessariamente vinculadas ao mundo rural. “Não importa onde eles vivem. São indígenas de qualquer maneira, falando ou não a língua, tendo ou não religião, porque os laços de parentesco é que de fato conferem a eles vínculos de pertencimento. Eles sabem contar as histórias de seus grupos, têm vínculos. Mas o Estado trabalha com estereótipos, e muitos deles, infelizmente, são fabricados pela antropologia. Quando só o que os indígenas têm são os laços de parentesco, ninguém quer reconhecê-los. Porque direitos indígenas são justamente direitos que o Estado gostaria que não existissem”, questiona Rangel.“É necessário compreender primeiro que esta demanda [por políticas públicas] é originária de um erro grande de estratégia de atenção aos povos indígenas. No período da ditadura, militares e especialistas diziam que no ano 2000 estaríamos desaparecidos ou integrados. Mas o movimento cresce e centra forças na demarcação. Ganhamos auto-estima, podemos afirmar nossa identidade. A população deixa o medo de lado”, afirma Jecinaldo Cabral, Sateré Mawé da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A liderança, no entanto, não acha que a migração deva ser a solução para os problemas das políticas públicas nas aldeias: “A Coiab apóia esta luta [dos indígenas em centros urbanos], mas não queremos que todo mundo venha para as cidades. Queremos terras indígenas onde possamos viver nossas culturas, tendo saúde, educação, proteção territorial. A cidade é triste: tem morte, bebedeira, prostituição”, pondera.Apesar dos riscos da cidade, a decisão de migrar também é parte da busca por formas de atender às necessidades que os indígenas passam a ter depois do contato com não índios. Óleo, roupa, luz: tudo exige dinheiro. Para entrar no mundo dos não índios e trabalhar para ter dinheiro, há que estudar. Mas estudar também custa. Requer roupas e livros, requer sair da aldeia. Até os anos 90, quando começaram a ser instaladas escolas indígenas nas aldeias, o estudo formal estava vinculado à saída – mesmo que temporária – da terra e do convívio comunitário.È o que conta o senhor Daniel Arcanho, do povo Kokama. “Eu estudei na escola da missão em Feijoal. Tingia saco de açúcar com jenipapo para fazer farda, porque sem farda não estudava. E eu queria estudar, aprender coisa. Padre dizia que ia apanhar quem falasse na língua. Exército mandava matar pajé na aldeia. Nós viemos porque achamos bom ir para Manaus”.“Nessa época, a gente já convivia um bocado com branco e a gente não sabia as coisas”, comenta Isaura Pereira, esposa de Arcanho. Enquanto os filhos trabalham na cidade, eles ajudam a cuidar dos 12 netos. Levam as crianças para a escola, tiram peixe de vez em quando de um igarapé lamacento que passa no fundo do terreno onde moram. Plantam mandioca na área que tentam regularizar junto à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). E ainda ajudam no sustento das casas com suas aposentadorias. Mesmo assim, Daniel e Isaura não reclamam de estar em Manaus, e já não fazem planos de voltar para as terras tradicionais de seus povos. Ali, na cidade, os netos podem “saber as coisas”. Fonte:ÍNDIOS NA CIDADE
Colaboração de conteúdo: http://www.agenciacartamaior.com.br
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