Um recente
relatório da organização indigenista Survivor International
trouxe novamente à luz a deplorável situação humanitária vivida pelos
índios Guarani Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul. Como se sabe, há
milhares de indígenas vivendo em condições absolutamente degradantes
enquanto esperam, à beira de estradas, pela demarcação de seus
territórios, como ordena nossa Constituição.
Com
um vasto território, não é por falta de espaço que não se concedem as
terras devidas à maior etnia indígena remanescente no país. Ninguém no
governo federal ousa enfrentar os interesses do agronegócio no estado
comandado pelo governador do PMDB André Puccinelli, enquanto que a mídia
mostra mais uma vez sua total insensibilidade, obviamente calada pelos
mesmos interesses supracitados.
Qual a situação real dos
índios Guarani Kaiowá em todo o estado do Mato Grosso do Sul? Em que
condições psicológicas os indígenas se encontram, com suas alarmantes
taxas de suicídio, que envolvem até crianças?
Marta
Azevedo: A situação dos guaranis no Mato Grosso do Sul é muito
complicada, pois há muitos anos eles vêm lutando para demarcar novas
áreas, conseguindo muito menos que o necessário para sua sobrevivência.
O
MS é um estado bastante agrário, com muitas fazendas, o agronegócio;
portanto, são interesses muito fortes, os quais os índios e a FUNAI não
têm enfrentado a contento para melhorar a qualidade de vida na região.
há muitos anos tais estatísticas e é a fonte mais confiável.
Eles,
de fato, têm registrado altas taxas de suicídio, saída praticada por
conta da falta de perspectiva de vida dos últimos 15, 20 anos. Ninguém
sabe ao certo, de forma muito detalhada, como andam essas taxas de
suicídio. A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) diz que elas estariam
baixando, mas eu não teria essa certeza. Precisaríamos checar com os
dados do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que é quem acompanha
cestas básicas da Funasa. E a taxa de mortalidade infantil também está
Outra
coisa que acontece ultimamente, e que nos alarma mais ainda, é uma
grave subnutrição entre as crianças, que têm extrema dependência de
alta.
Enfim, é toda uma situação realmente muito ruim,
inclusive para o país. Mas o que nos assusta é a enorme violência que
vem sendo praticada contra as comunidades que lutam pelas suas áreas
tradicionais na forma de assassinatos e esquartejamentos. Após as
mortes, os corpos são encontrados dentro de sacos de lixo, em geral em
fundos de rio ou locais de difícil acesso – isso quando são encontrados.
E
foi um assassinato ocorrido dessa maneira na Argentina que mais me
alarmou, na região de Misiones, fronteira com Paraguai e Brasil. Existe
um grupo de guaranis na região que foram expulsos do Paraguai. Isso
porque o agronegócio brasileiro chega ao Paraguai, onde já há muitos
fazendeiros brasileiros em certas partes do país. Inclusive, há casos em
que borrifaram veneno nos índios e nas aldeias, como ocorreu no segundo
semestre do ano passado, deixando vários deles enfermos. Apesar de não
sair na grande mídia daqui, foi bem falado por lá.
Ou
seja, o agronegócio chega ao Paraguai, expulsa os guaranis, que vão ao
norte da Argentina. Dessa forma, na região de Misiones, há um boom de
assentamentos deles, onde houve uma criança assassinada recentemente.
CC:
Qual é, mais exatamente, a rotina costumeira desses indígenas? Que
tratamento eles recebem das autoridades, mídia e demais populações
locais?
MA: Existem três situações muito diferentes. Os Guaranis
são o povo indígena mais populoso, em seus três diferentes grupos
(Kaiowá, Nhandeva e Mbya), totalizando 50 mil pessoas.
No
MS, estão os nhandeva e os kaiowá. As situações são diferentes no
seguinte sentido: aqueles que estão nas reservas mais antigas,
demarcadas no começo do século 20, ainda no tempo do Marechal Rondon,
vivem uma situação complicadíssima, pois as reservas estão absolutamente
superlotadas. Há reservas de 2000 hectares com população de 5000
pessoas, uma densidade demográfica de cidade grande praticamente. Assim,
eles não têm lugar pra roça e precisam sair da reserva para trabalhar
nas usinas próximas, onde conseguem emprego, para depois voltar às
reservas, que acabam sendo reservas-dormitório. Isso ainda faz com que
as mulheres fiquem sozinhas.
Por outro lado, eles ao menos têm o
atendimento da Funasa, na maior parte das vezes escola, enfim, uma
atenção maior, embora a situação seja muito ruim em termos de acesso à
terra.
Há outra situação, que, a meu ver, é a melhor no estado:
é a daqueles localizados em terras indígenas demarcadas na década de
80, que são oito áreas ‘novas’, como chamamos. São 8 terras e possuem
tamanho mais adequado à população tradicional desses locais. Eles têm
atendimento da Funasa, da FUNAI e uma maior extensão de terra, onde
ainda é possível fazer agricultura, um pouco de colheita e caça. É uma
situação um pouco melhor.
Mas a pior situação se refere a 22
assentamentos, em beira de estrada, exatamente como os do MST. Só que
com o agravante do enorme preconceito existente no MS em relação aos
guaranis, que são chamados de bugres. E desses 22 assentamentos, a maior
parte está embaixo de lona preta; outros em reservas mais antigas, sem
acesso à água, submetidos a toda a violência dos fazendeiros, que se
sentem já invadidos de verem-nos às portas da propriedade. Os que ficam
em tais condições não têm acesso à saúde, pois às vezes a Funasa não
consegue atendê-los ou não pode. Tampouco têm acesso à escola. Dessa
forma, as crianças vão às escolas das cidades mais próximas, onde sofrem
um preconceito horroroso; não têm como lavar roupa, não têm comida…
Esses são os que realmente sofrem a violência que mencionei. Estive lá
em um acampamento deles e, logo depois que voltei, a liderança que
conheci foi assassinada. E nada sai na mídia.
Por parte do governo, a
FUNAI estruturou alguns grupos de trabalho (GT), a fim de propor novas
áreas. Dessa forma, temos alguma esperança com esses novos GTs que foram
para lá. No entanto, os GTs também sofrem muita violência, ameaças,
perseguição a carro. Mas estão trabalhando.
CC: O que se pode dizer
do relatório da Survivor International recém-entregue à ONU, listando
toda sorte de mazelas na vida dos guaranis? Como você acha que deveria
ressoar em nossa sociedade?
MA: Acho que quanto mais pudermos
veicular a situação dos Guaranis no Brasil todo e internacionalmente,
melhor. O que vejo hoje em dia, pelo menos em São Paulo, é algo que se
aproxima mais do lado folclórico, chamam crianças indígenas para
acampar… Que bom, pois há uma certa valorização da questão indígena por
parte da opinião pública, mas com enorme desconhecimento da situação
deles no MS.
O Mato Grosso do Sul é o estado mais anti-indígena do
Brasil. É completamente diferente do Mato Grosso, Amazonas, onde o
preconceito diminuiu um pouco.
Precisamos fazer uma campanha
naquele estado. O problema é que ninguém tem coragem de descer lá, já
que está nas mãos do PMDB, há a questão das alianças de governo… E
ninguém faz nada.
CC: Qual tem sido a atuação dos governos, nas
três esferas, na resolução das demarcações de terra e demais direitos
exigidos pelos indígenas?
MA: No que diz respeito à política
de educação, no Brasil, ela é implementada pelos estados ou municípios.
Portanto, de maneira geral, precisa de mais apoio à educação dos índios,
que não são abarcados por nenhum dos entes. Existem cursos de formação
de professores Guarani Kaiowá, numa boa iniciativa apoiada pela
Universidade de Dourados.
Mas falta muita infra-estrutura nas
escolas, tele-centros, enfim, investimentos e consciência do governo de
qu
e os
povos indígenas em seus territórios são uma riqueza para o estado.
É a
mesma coisa de Roraima, quando diziam: ‘há um problema, que são os
índios’. Não é problema. Temos que, cada vez mais, trazer à cidadania
brasileira a idéia de que essa população tem muito a nos ensinar. Temos o
privilégio de conviver com essa população, sua sabedoria e modos de
vida, podendo aprender com eles. Nunca podemos encarar a questão como um
problema ou uma barreira cultural, como ouço muitas vezes de alguns
serviços de saúde. Não é uma barreira. Eles têm cultura, línguas
diferentes, uma riqueza imensa.
E nós temos de aprender essas
línguas. Não há um não-indígena que fale guarani no Brasil. Isso é um
absurdo. Temos 50 mil guaranis no Brasil e ninguém fala a língua deles,
que são obrigados a falar português, a língua do dominador. Não ficamos
bravos quando um americano vem aqui trabalhar e não sabe falar nossa
língua? É a mesma coisa em relação aos indígenas. As pessoas que
trabalham com saúde e educação indígena têm de aprender o mínimo das
línguas e culturas indígenas, de modo que possam respeitá-las, pois
aquilo que não conhecemos não respeitamos, mesmo sem querer.
Portanto,
acho que os serviços de educação e saúde aos Guaranis Kaiowá, embora
estejam melhorando com algumas boas iniciativas, ainda deixam muito a
desejar. Muito mesmo. Há muita coisa que poderia ser feita e, por falta
de vontade política, não é.
CC: Que interesses mais específicos
impediriam a resolução mais rápida de tais impasses e também a inserção
das comunidades indígenas no processo econômico regional, uma vez que a
produção de suas terras também poderia se inserir na economia de
mercado?
MA: Na verdade, nas reservas antigas, quase não há
espaços para produzir. Nas áreas de roça, como no Alto do Solimões, os
grandes provedores de alimentação da cidade são os indígenas, que provêm
os mercados regionais com toda a produção de roça.
No
MS, é muito urgente fazer, por parte do governo federal e estadual,
mesas de concertação, discussão, de produção de consenso, que poderiam
ser paritárias. Ninguém abre diálogo com os guaranis, que se reúnem
apenas entre eles e vão entregar suas demandas ao governo. Depois, um ou
outro funcionário vai conversar com eles. Mas não existe uma
sistemática, como essas mesas, onde suas idéias possam ser expressadas
em sua língua. É como se nós tivéssemos de expressar nossas demandas em
francês.
Já avançaríamos muito com uma medida dessas. Poderia ao
menos reduzir um pouco essa violência tão grande que há por lá. É
necessária alguma mediação de conflitos, talvez com especialistas
contratados. Creio que esse seria o caminho para os guaranis entrarem no
mercado regional.
CC: Como tem sido a solidariedade a esse
movimento? Além do engajamento dos guaranis da Bolívia, Paraguai e
Argentina, há um movimento forte por parte de outros atores da sociedade
civil, ou a luta dos índios é isolada?
MA: Lá no MS, se você for a
Campo Grande ou qualquer cidade por ali, verá que estão isolados, exceto
por algumas iniciativas de universidades. Não existem grupos de apoio,
nas escolas não há material para que as crianças compreendam quem são
esses seus vizinhos guaranis…
O que podemos fazer são matérias que
saiam na mídia e expressem solidariedade, pois não há muitos caminhos.
Os guaranis, por sua própria característica cultural, não possuem uma
organização unificada, onde se possa falar com algum presidente. Não
existe isso, justamente por serem guaranis. Se quisermos que eles formem
alguma organização, estaremos desrespeitando a sua organização social e
política.
É muito difícil conseguir exercer solidariedade. Assim, o
que podemos fazer é veicular cada vez mais material em português e
tentar influenciar mais escolas do estado a estudar um pouco mais sobre
eles, para que as crianças não sejam simplesmente ensinadas a chamá-los
de bugres e reproduzir preconceitos.
Temos de abrir cada vez mais o
leque, aprender a língua, além de divulgar na internet e outras mídias,
já que não há muitos tele-centros ou sites sobre o tema. No Amazonas,
por exemplo, tem muito mais. É importante constituir alguma rede ao lado
deles.
CC: O processo eleitoral que teremos neste ano traz
esperanças, angústias, que sentimentos aos povos da região? Há alguma
perspectiva de melhora na luta desses povos ou os dias que lhes esperam
se mostram sombrios?
MA: Conversando com algumas mulheres Kaiowá
de uma comunidade, perguntei a elas o que mais querem, o que lhes traria
mais esperança. Sabe o que responderam? “Dar documentos aos nossos
filhos”. Eles não têm carteira de identidade, e fora da cidade não são
aceitos em nada. A coisa lá é tão complicada que… não sei.
Gostaria
muito que os próximos governos federal e estadual mudassem essa
situação. Mas gostaria muito mais que a questão indígena não fosse
objeto de trabalho e reflexão por parte de um partido só, pois não se
trata de uma questão partidária. Claro que os modelos e tratamentos da
questão serão diferentes em cada partido. Quanto a isso, tudo bem.
Nesse
sentido, acho que a questão indígena está mais bem incorporada no
projeto de governo da Marina Silva atualmente. Gosto muito do PT e do
governo do Lula, e espero que a Dilma consiga articular tal questão um
pouco melhor no Mato Grosso do Sul, mas depende muito de quem for o
governador.
Tenho muita esperança, mas o que gostaria de verdade é
que esta não se tornasse uma questão partidária. E foi isso que
aconteceu no Mato Grosso do Sul. Como lá o governo é do PMDB, o governo
federal não se mete, não briga, porque não pode perder os aliados de lá.
Isso é um absurdo! É uma população que sofre uma violência terrível em
função de uma aliança partidária.
A questão indígena é
humanitária, deveríamos ter uma visão um pouco mais larga a respeito do
assunto.
Fonte:AJI - Ação dos Jovens Indígenas de Dourados